quarta-feira, 25 de abril de 2012

CRÔNICA: "REMINISCÊNCIAS DA INFÂNCIA"

                                             Crônica do Livro:"CAUSOS CLÍNICOS"
                 


                                                                        Autor:Fernando Ortiz                                                                                        


Foto da Maria Louca
Lembro-me, tinha aproximadamente uns cinco anos de idade. Usava calças curtas com suspensórios e ficava sempre debruçado sobre uma janela que se abria para rua, assim com ajuda de uma cadeira a qual me apoiava, eu passava horas do dia espiando os movimentos dos transeuntes que passavam. Carros naquela época eram escassos, mas pessoas transitando eram muitas. E eu ficava fascinado com minha diversão, pois descobria diversos tipos de pessoas, até então desconhecidas para mim. Enfim, descobria o mundo além dos rostos conhecidos da minha família. E eis que me deparei certa vez com uma mulher com os cabelos desgrenhados, que vinha caminhando do outro lado da calçada, toda maltrapilha, com uma expressão de botar medo, gesticulava muito e falava sozinha. Quando avistei esta figura horripilante, estremeci dos pés a cabeça, e minha reação de imediato foi fechar a janela e esconder-me debaixo da cama até o medo passar. Contei o fato para vó “Mariquinha”, apelido carinhoso de Dona Maria de Moura Neves (minha avó), que de pronto aconselhou-me para afastar-me de tal mulher, pois tratava-se da temível "Maria Louca",raptora de crianças.Isso encheu-me de mais medo e temor!
Minha avó percebendo meu abalo emocional abraçou-me e cobriu-me de beijos, acolhendo-me em seu aconchegante e doce colo. E eu fiquei aninhado por horas até  sentir-me bem novamente.
Minha avó dizia em alto e bom som que era seu "porretinho”, pois ela tinha dificuldade para caminhar, então ela se apoiava em mim. E assim me levava com ela em suas visitas à suas amigas, nestes encontros elas conversavam muito sobre a vida e a família. Toda esta conversa era permeada por chá e biscoitos, estes eram os meus prediletos. Na maior parte do tempo, permanecia quieto e calado!E essa atitude, era elogiada pelas amigas de minha avó!Vezes e outras eu era tentado pela minha curiosidade a mexer nos objetos ao meu redor! Certa vez na casa de uma amiga de minha avó, Dona Belinha, fiquei tentado a tocar num vaso de porcelana. Na mesma hora, a tal senhora chamou minha atenção e sem que minha avó percebesse aplicou-me vários beliscões no braço. Lembro-me até hoje que doeu muito, contive meu choro, mas as lagrimas foram inevitáveis e minha avó não se deu conta da situação!E toda vez que ela resolvia voltar a visitar esta senhora eu relutava em ir!Chorava muito e argumentava que na casa daquela senhora eu não voltaria nunca mais!Minha avó ficava sem entender minha atitude e eu jamais lhe contei o motivo!
Ela me levava também às missas, eram todos os dias. E eu permanecia muitas vezes em pé por horas, por falta de lugar para sentar. Outras vezes sentava-me no colo de minha avó. Mas, a ida às missas para mim era a maior amolação, pois eu não entendia nada que o padre dizia, pois a pregação era toda dita em latim. Isso era uma chatice!Minha avó percebendo este fato resolveu a questão, subornando-me com um bolinho chamado "Mãe Benta”, que ela adquiria numa padaria próxima e me ofertava após as missas!Assim eu passei a acompanhá-la as missas sem reclamar!Enfim, eu era seu "porretinho" e um grande apreciador de "Mãe Benta"!
Certa vez, minha avó precisando ir à padaria que ficava a um quarteirão de nossa casa, deixou a porta entreaberta, e aconselhou-me que não saísse em hipótese nenhuma para rua, e que eu ficasse tranquilo que ela voltaria em instantes, naquele dia estava somente eu e ela em nossa casa!Assim eu fiz, fiquei sentado no sofá de casa aguardando a volta de minha avó!Após angustiosos minutos de espera, tocaram a campanhia!Pensei com meus botões: A porta está semi-aberta, porque estaria minha avó tocando a campainha?Mas levado pela alegria de vê-la novamente, corri até a porta e a abri por completo!E tive a maior decepção, pois de frente para mim estava a "Maria Louca”, que me indagou: Têm alguém em casa moleque?Estremeci por completo, o medo tomou conta de mim, imediatamente meu coração disparou e não pensei duas vezes corri para o interior da casa e me escondi debaixo da cama dos meus pais e ali permaneci. Ouvi os passos daquela mulher invadindo a casa, e ela passou pelo quarto e caminhou até a cozinha. Mexeu nas panelas!E em seguida passou a procurar-me pela casa e dizia: Vou te pegar menino!Esteja onde estiver seu danado!
Logo me avistou debaixo da cama, e estendeu sua mão para puxar-me pelas pernas,vivi momentos de terror,fiquei paralisado de medo!Até que a "Maria Louca” conseguiu agarrar-me por uma perna e me arrastou-me até a porta da minha casa!E segurando forte pelo meu braço levou-me para rua!Gritei por socorro diversas vezes... Na esperança que algum vizinho ouvisse!Quanto mais eu gritava mais ela gargalhava!E assim foi me levando para longe de minha casa. Estava rouco de tanto gritar,quando o dono do bar ,que ficava na esquina de casa, arrancou-me bruscamente dos braços daquela doida e segurou-me no colo, protegendo-me! E com safanões e palavrões afastou aquela mulher para longe de mim!Entre choro e soluços,ele me acalmou,segurando na minha mão levou-me de volta para minha casa!No caminho encontramos com minha avó que já vinha ao meu encontro, também em prantos!E perguntava ela: Onde você estava Fernandinho?
O homem que me salvará das mãos daquela mulher, explicou o sucedido para minha avó!Ela surpresa,comovida agradeceu e ainda em prantos abraçou-me e beijou-me e acolheu-me em seu aconchegante colo e disse-me baixinho: Perdoe sua avó, Fernandinho!E pediu-me para guardar segredo deste fato!
Somente agora após 50 anos de sua morte estou tornando público este acontecido!Perdoe-me pela indiscrição vó “Mariquinha”!       

quinta-feira, 19 de abril de 2012

CRÔNICA:"VIDA DE CÃO"

                                         Crônica do Livro:"CAUSOS CLÍNICOS"
                                

                                                                                                                                                                                                                                                                    Autor:Fernando Ortiz




Cão Lélo
Tenho o costume de abastecer o meu veículo sempre no mesmo posto de gasolina, sendo assim escuto muitas histórias contadas pelos frentistas. E uma delas chamou minha atenção, dizia um frentista na ocasião, que um cão vagava todos os dias pelas redondezas do posto. E contava, ele:

-Doutor, existe um cão de cor amarela, de grande porte, raça indefinida, quero dizer vira-lata!Vem sempre ao posto, e o interessante é que toda vez que avista um carro de polícia ele late insistentemente para a viatura e para os policiais!Que coincidência! Olhe ele ali, não é mesmo grande e amarelo?

Vi o cão e concordei. E ele continuou: Parece que ele tem bronca dos guardas, não é mesmo?
-Eu acho que ele guarda na memória algum tipo de maus tratos que sofreu!Retruquei.
-Pode ser Doutor!Disse e continuou a história:
-Contam que o "Lélo”, nos o chamamos assim, pois é... Ele pertencia a um sujeito que morava naquela casa de esquina, vizinha ao posto... Certa vez este cara foi preso pela polícia devido a algum delito que cometeu, e o cão presenciou o fato... Como ele resistiu à prisão, os policiais tiveram que utilizar a força para prendê-lo, o cão tentou protegê-lo, mas foi impedido pelos guardas!Desde então sem dono e sem lar, o cão vaga pelas ruas e pernoita no posto!E o interessante que este local é próximo a casa onde antes morava!De repente ele interrompe:
-Doutor, eu estou contando a história do cão para o senhor, mas olha ele latindo para a viatura policial que esta passando na rua neste momento!
-É mesmo, você tem razão!Concordei. E logo avistei o cão latindo para os policiais.
-É como eu disse Doutor, o danado do cão é invocado com uma viatura policial! Tentei explicar:
-Os animais de estimação, principalmente os cães, podem ficar "aborrecidos" como crianças quando expostos a situações de conflito!
-É mesmo, Doutor?Continuei com as minhas argumentações: 
-Os cães são capazes de ter empatia com os humanos a ponto de compartilhar as mesmas emoções de seus donos!E isso justifica o comportamento deste cão atualmente! 
-Poxa, Doutor!Exclamou ele. E eu continuei:
-Ele está demonstrando descontentamento com os guardas, por alguma experiência negativa vivida anteriormente!Essa atitude vai além de uma simples cópia do comportamento humano, pois eles são afetados física e emocionalmente quando expostos a situação de stress. Eles também possuem a habilidade de esboçar reações em situações reais de conflito.
-Então isso explica ele ter tanta bronca de policiais!Deduziu ele.
-É o que parece!Concluí.
-E como é que o Doutor sendo médico de gente entende tanto de animais!Perguntou.
-A questão não é essa, eu aprendi a conhecê-los para respeitá-los!E hoje sou um admirador destes fabulosos animais, altamente sociais e cooperativos! 
Em seguida, desci do meu carro e caminhei em direção ao cão. Ao aproximar-me afaguei sua cabeça e disse em tom amigável:
-Bom garoto!Ele abanou o rabo e lambeu-me em retribuição.
Mas, logo começou a rosnar. Estranhei e virei para trás, deparei-me com um policial, que disse:
-Doutor, o senhor está dando atenção para um cachorro de meliante?Argumentei que isso não era importante.
-O mais importante é a vida deste animal!Ele riu e completou:
-Deixe disso, Doutor!Esse cão é somente mais um vira-lata, igual a este tem muitos por aí!Disse.
Enquanto o policial falava, observei que o cão se aproximou da viatura e num ato de bravura com misto de vingança, levantou a pata traseira e sem cerimônias urinou no pneu da viatura. Esbocei um sorriso e respondi ao guarda:
-Mas é isso que faz dele um cão especial, não tem casa, nem alimento, nem tampouco um dono!Portanto, a partir de hoje vou adotá-lo!Retruquei.
-Então faça bom proveito, passar bem Doutor!Virou-se e partiu em sua viatura.
Neste instante percebi que com o meu ato, tinha em minha posse, uma vida para proteger e abrigar!E imediatamente "convidei" o "Lélo" a adentrar meu veículo e parti em companhia de meu mais novo amigo rumo a sua nova família.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

CRÔNICA:"A TENEBROSA DO SEXTO ANDAR”

                                                Crônica do Livro: "CAUSOS CLÍNICOS"

                      

                                                         Autor:Fernando Ortiz 


Dona Clotilde

Enfim, mudei. Mudei de apartamento!Novos ares!Novo ambiente!Lugar arborizado, bem ao meu estilo de vida!
Estou instalado, após uma mudança conturbada, aproveito para relaxar e aproveitar o novo lar. E eis, que sou contemplado com o canto de passarinhos na minha sacada. Perfeito!Não poderia ser melhor. Local silencioso, tranquilo, vizinhos amigáveis!Toda a mobília no seu devido lugar!Fim de semana sem plantões médicos!Aproveito para recostar minha cabeça no travesseiro e tirar uma soneca no meu novo quarto!Estou quase pegando no sono e escuto um barulho semelhante a uma furadeira!Não é possível!Será que alguém desavisado resolveu justamente neste dia furar a parede?Mas é domingo, dia consagrado ao descanso!Não acredito, mas o barulho ensurdecedor continua: RRREEEERRREEEERRREEE!
Levanto imediatamente da cama e enfurecido decido interfonar na portaria e reclamar do sucedido:
-Senhor, acabei de mudar-me para este apartamento e estou tentando descansar neste domingo e sou surpreendido com o barulho insuportável de uma furadeira!Gostaria que o senhor verificasse para mim e aconselhasse esta pessoa a parar!Ao que, retrucou o porteiro:
-Sim, Doutor!Realmente por normas do condomínio, não é permitido fazer barulho no dia de hoje!O senhor sabe de onde vem o barulho?Perguntou ele.
-Claro!É no apartamento acima do meu, talvez o 61?Afirmei.
-Hii... É do apartamento da Dona Clotilde, uma senhora encrenqueira, mas vou dar um jeito!
Minutos depois, voltou a me ligar:
-Pronto Doutor!Já fiz a reclamação!Agradeci, pois tinha certeza que o silêncio voltaria a reinar.
Estava sossegado pensando com meus botões: Como era bom relaxar e curtir esses momentos de lazer que a vida nos proporciona!Estes momentos deveriam ser mais duradouros!De repente fui interrompido em meus pensamentos por um estridente ruído: RRIIIIIIMM!
Logo identifiquei que se tratava da velha senhora do sexto andar, arrastando móveis em seu apartamento!E o meu sossego havia terminado!
E mais: RRIIIIMMM, o barulho estridente continuava sem dar tréguas, e novamente: RRIIIIMMM!
Percebi que aquilo não teria fim, portanto, resolvi de novo interfonar para a portaria do prédio pedindo providências:
-Senhor Lopes, sou morador do apartamento 51, estou novamente ligando para comunicar, que a senhora do 61 continua fazendo barulho.Desta vez ela foi longe demais,esta arrastando móveis em seu apartamento,não permitindo que eu descanse...O barulho é intolerável! Peço que tome providências!
-Hii... Doutor!De novo, agora a coisa complicou é encrenca na certa... A Dona Clotilde é uma velha muito ranzinza!Vou tentar dar um jeito!
Aguardei, e poucos minutos depois ele interfonou-me:
-Sabe Doutor!A Dona Clotilde pede desculpas pelo incômodo!Até achei meio estranho... Mas, ela disse que isso não iria se repetir!
Fiquei satisfeito com o desfecho da situação, e tratei de acomodar-me em minha cama para dedicar-me a uma merecida soneca.
Comecei a pegar no sono e abruptamente fui despertado com o barulho de contínuas marteladas na parede: TUM!TUM!TUM!
Era óbvio que o barulho vinha do sexto andar!Liguei novamente na portaria e fiz nova reclamação!Então o porteiro me aconselhou:
-Sabe Doutor!Se o senhor quiser pode falar diretamente com ela, basta ligar 54 e em seguida o número do apartamento!
-Tudo bem!Respondi.
E assim fiz: Liguei uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes!E em nenhuma destas vezes, ela não atendeu o interfone.
Então resolvi decidir esta situação pessoalmente!E fui bater na porta da moradora do apartamento 61!Bati insistentemente, e nada!Bati novamente e nada!Tentei a campainha!Nada!Cheguei a pensar que ela havia saído, mas não! Na certa não queria atender a porta! Talvez, envergonhada com a sua atitude?Volto ao meu apartamento e tento novamente cochilar.
Sou surpreendido com uma série de ruídos: RRREEEERRREEEERRREEE! TUM!TUM!TUM!RRREEERRREEEEERRREEE!
Não acredito, fui direto ao interfone:
-Senhor Lopes, a velhota voltou à carga!Não é possível!O barulho é ensurdecedor!Ele ficou mudo... De repente fez um silêncio:
-Senhor Lopes, Senhor Lopes, parece que ela parou!Não ouço mais nenhum barulho!
Até que enfim, pensei. Mas, não iria durar muito! E em seguida adormeci. Após um tempo, ouço: CATAPLAM!Acordo assustado e olho o relógio, já era meia-noite! 
Parece que alguém bateu uma porta?Penso. Instante depois toca o interfone, era o Senhor Lopes, meio esbaforido,que diz:
-Doutor, Dona Clotilde passou agora pela portaria, e disse-me que iria dormir na casa de sua filha!Agradeci e respirei aliviado, enfim ficaria em paz e com certeza, teria  uma tranquila noite de sono!
Após um domingo cansativo, exaustivo!Levanto na manhã seguinte e apronto-me para sair, pois iria começar nesta 2ª Feira uma nova maratona de plantões. Chego ao hospital e dirijo-me ao consultório, neste momento adentra a sala uma senhora idosa, baixinha e com cara de poucos amigos.
Li o seu prontuário sobre minha mesa, e constatei surpreso que os dados daquela senhora coincidiam com o meu endereço: Rua Floriano Peixoto Nº 789 - Apartamento: 61.
Portanto, um andar acima do meu!E mais surpreso fiquei, quando li o seu nome: Clotilde... Não tinha dúvidas eu estava frente a frente com a tenebrosa do sexto andar, a terrível perturbadora do sossego alheio: Dona Clotilde em carne e ossos!Antes que eu pudesse esboçar alguma reação, ela foi logo dizendo:
-Doutor, eu não tenho muito tempo a perder, passei um domingo de cão!Um novo vizinho que acabou de se mudar no meu prédio me perturbou o dia inteiro com suas ligações ao meu apartamento. Eu sou uma mulher viúva. Sei lá, o que esse tarado queria!Só sei que isso me deixou muito perturbada!Acredite, tive que dormir na casa de minha filha!Receite logo, um tranquilizante para mim!

Tentei argumentar,desisti.                                                                                                          

quinta-feira, 12 de abril de 2012

CRÔNICA:"ENFIM...SÓ!"

                                                Crônica do Livro: "CAUSOS" CLÍNICOS

                              

 

                                                                               Autor:Fernando Ortiz


Segundo domingo de Maio,”Dia das Mães”!Mais uma data inventada pelo comércio para aumentar as vendas... E como faturam, as lojas ficam pululando de gente, todos à procura de uma lembrancinha para suas respectivas mães! É bonito de se ver... Mas, triste ao mesmo tempo... Não tenho mais mãe... Não tenho com quem festejar este dia!Afinal, nos somos tomados por uma enxurrada de comerciais de TV, que acabamos sendo contaminados!
Eis a questão, com quem comemorar? Minha companheira saiu para comemorar esta data com sua mãe, ambas foram almoçar juntas neste domingo, não fui convidado, também pudera trata-se de almoçar com a sogra... E sogra não é mãe!Vou ter que me virar na cozinha, talvez o velho e bom sanduíche, que nunca me abandona, sempre esta lá na geladeira esperando a oportunidade para saciar minha fome, será minha opção!
Fico imaginando que ele é um suculento inhoque... Pronto, estamos resolvidos!
Mas, minha data irá chegar ”Dia dos Pais”, sou pai de dois meninos!
Neste dia (mais uma data comercial) serei cultuado, reverenciado... Todos estarão me convidando para almoçar, ganharei presentes, será inesquecível!
Há um empecilho... Meus filhos são de mães diferentes, mas posso contornar a situação, almoçarei somente com os dois, sem a presença das referidas mães!
Decidido, basta comunicar a ambos!
Não deu certo! Acabo de ser avisado que meus filhos irão “festejar” o “Dia dos Pais”, com seus respectivos padrastos... Alegaram que neste dia não poderão abandonar, quem de fato os criaram!
Senti-me o último dos homens! Fui reduzido à mera contribuição biológica!
Terei que abastecer a geladeira... Mais uma data comemorativa que comerei sanduíche e sozinho!

Crônica: ”História de uma crise convulsiva”

                    Crônica do Livro: "CAUSOS CLÍNICOS"              

                                                        Autor:Fernando Ortiz


João Lapinha
Era um final de tarde quente, inicio de mais um plantão médico. Na minha tez escorria uma fina gota de suor, mas já havia marca do mesmo na minha  camisa, demarcando a região das axilas.
Eis que adentra o consultório um homem algemado e escoltado por um guarda. Olho com espanto, mas logo o policial se apressa em explicar:
-Doutor, eu estou escoltando o preso para sua consulta rotineira!
Olho para aquele homem cabisbaixo e logo retruco:
-O senhor poderia fazer a gentileza de soltar as algemas para que eu possa examiná-lo?
-Sim, Doutor!Ele não representa nenhum perigo, trata-se de um tremendo "171"!Mas, cuidado com a carteira!O vagabundo é especialista em bater carteiras!Advertiu o guarda em tom jocoso, para em seguida abrir as algemas. O homem sentindo-se mais à vontade, esfrega as mãos, coça a cabeça e esboça um sorriso amarelo. E resolve contar sua história:
-Doutor, entrei nesta vida porque estava na pior.Parece que eu nasci com o urubu plantado no meu destino. Daí, já viu.não tive outro jeito...comecei a bater umas carteiras e aplicar uns pequenos golpes nos otários...E como tem otário neste mundo!!E continuou:
-Até que uma madame,vítima de um golpe que eu apliquei,resolveu bater com a língua nos dentes e me caguetou para os homens!Fui pego com a boca na botija. E acabei em cana!Enquanto escutava atento, ele desatou a falar:
-Esse lance de bater carteira, não é bolinho, é coisa séria!Tenho muitos anos de janela!Mas, o macete é aplicar golpes em otários, rende mais, só precisa de um bom papo e pronto, o vacilão caí que nem patinho!Então resolvi interrompê-lo, e comecei a questioná-lo:
-Como é o seu nome?Indago. Meio ressabiado, mas não perdendo a pose, ele responde:
-Eu sou João Lapinha, mas pode me chamar de "Boca-Mole"! Sou um cara maneiro, pintoso, sempre fui muito bem quisto pelo mulherio. Agora estou entregue às traças. E matando cachorro a grito. Mas, um dia eu vou sair dessa vida. Nasci pra ser tratado a pão-de-ló. E, no entanto, estou só me dando mal. Um dia eu tiro o pé da merda. Juro por essa luz que me ilumina!Completou.
 Torno a inquiri-lo:
-Qual o motivo da consulta?Ocorre uma longa pausa, mas enfim responde:
-Sabe Doutor... Dizem que sou epilético... Quando tenho uma crise,dizem que eu me debato,reviro os olhos e a boca fica espumando, igual a cachorro louco!
É assim mesmo?Pergunta ele.
-Sr. João, as convulsões causam movimentos involuntários em ambos os lados do corpo, resultando na contração súbita dos músculos, que são os espasmos musculares, e como envolvem a perda do controle muscular, fazem a pessoa desmaiar ou cair. Sendo acompanhada pelos sinais de aumento da produção de saliva e olhar fixos dos olhos. Entendeu?Perguntei.
-Mais ou menos!Retrucou meio desconfiado.
-Explico melhor: Epilepsia é uma doença neurológica crônica, podendo ser progressiva em muitos casos. E é caracterizada por crises convulsivas recorrentes!Continuei minha explicação:
-Uma crise convulsiva é uma descarga elétrica cerebral desorganizada que se propaga para todas as regiões do cérebro, levando a uma alteração de toda atividade cerebral. Podendo ocorrer alterações motoras, nas quais os indivíduos apresentam movimentos de flexão e extensão dos mais variados grupos musculares, além de alterações sensoriais, e ser acompanhada de perda de consciência e perda do controle esfincteriano. Concluí.
-Ah... Isso eu sei, o sujeito fica todo mijado e cagado!E riu, para em seguida perguntar:
-Eu tenho esse troço? Tem cura?Porque eu tomo o remédio há muito tempo e até agora não melhorei!Apressei-me a responder:
-O tratamento da epilepsia é realizado através de medicamentos que controlam a atividade anormal dos neurônios, diminuindo as cargas cerebrais anormais. Resultando no controle das crises ou à diminuição da freqüência e intensidade das mesmas!
-Então receita para mim este santo remédio, que eu quero ficar bom logo!Respondeu.
-Antes o senhor terá que submeter-se à  um exame físico e neurológico completo. Em seguida solicitarei  exames laboratoriais de praxe (hemograma completo, glicemia, cálcio, uréia, etc.). E também um E.E.G. - Ele não se conteve e desabafou:
-O senhor esta zoando com a minha cara?...Esta de sacanagem comigo?Vai me dizer que tudo isso é preciso para o senhor me dar uma simples receitinha?Indagou. Minha resposta foi lacônica:
-Sim!Ele no entanto, restringiu a resmungar baixinho:
-Que saco!
Fiz-me de desentendido e continuei meu exame neurológico e em seguida solicitei os exames complementares necessários, e por fim prescrevi o tão aguardado anticonvulsivante!De posse da receita, ele exclamou:
-Bendito remedinho! Se não funcionar, eu sei que pelo menos dá sono!Obrigado, Doutor!
Foi novamente algemado, levantou-se da cadeira e foi conduzido pelo guarda até a saída,mas parou,pensou e voltou. E agachando-se  até mim, confidenciou-me baixinho:
-Doutor eu não tenho a tal doença, eu simulo os ataques, para poder sair da cadeia de vez em quando e respirar um ar de liberdade!(Soltou uma sonora gargalhada.)E foi-se embora...Quanto a mim: Fiquei boquiaberto! 



Crônica:"Quem conta um conto aumenta um ponto"

                          Crônica do Livro: "CAUSOS CLÍNICOS"                                               
            


                                                                             Autor:Fernando Ortiz



Nasci em 09/06, após 270 dias de gestação, foi um parto natural, segundo me contaram e logo que nasci recebi o número 8069, que é o número de minha certidão de nascimento!
Comecei aí a entrar no mundo dos números. E assim, comecei minha via crusis pela vida, cursando a 1ª série do antigo primário, sendo sucessivamente promovido para a 2ª, 3ª, 4ª. E aí no meio da minha alfabetização aparece a admissão, correspondente a 5ª série. Depois veio a 1ª série do ginasial, em seguida a 2ª, 3ª, 4ª série. E finalmente a 1ª série do colegial e após a 2ª e a 3ª série. Na escola não me chamavam pelo nome, mas sim por um número. Um ano eu era o 36 no outro o 38. E na sala de aula a Professora fazia a chamada:
-38?
-Presente, fessora!Respondia. E assim fui levando minha vidinha escolar!
Até chegar ao fim do colegial. Foi então, que uma professora me disse:
-38, se você não tirar nota 8,não irá passar de ano,portanto não irá se formar com sua turma este ano!
Não pensei 2 vezes e segui o conselho dela,estudei muito e tirei 8,5 e passei de ano!
Enfim, a fase adulta e a escolha da faculdade que iria seguir!Mas, desde pequeno não tinha dúvidas iria cursar medicina!Lembro-me da minha primeira consulta ao médico, minha mãe havia me levado as pressas, pois eu estava apresentando coriza, febre alta, tosse com expectoração e dores pelo corpo. O médico na ocasião utilizou o seu estetoscópio para auscultar meus pulmões, e pediu-me:
-Diga 33, garoto!E eu maravilhado com o estetoscópio, enchi os pulmões e respondi:
-33, doutor!Foi neste dia que decidi que seria médico!
Eis então chegado o grande momento terminado o colegial, iria cursar a Faculdade de Medicina!
Mas, antes teria que tirar vários documentos e transformar-me em vários números: Carteira de Identidade nº789665437, CPF nº16359876324, Título de Eleitor nº693928579394, Carteira de Habilitação nº963586796, Carteira de Trabalho nº 09386. Quantos números! Para ser reconhecido como cidadão e garantir assim, os meus direitos.
O que importa é que passei no vestibular de Medicina, depois de 6 anos seria um Médico!Mas, aí começou novamente meu martírio, 1º ano da Faculdade de Medicina, 2ºano, 3ºano, 4ºano, 5ºano, 6ºano!
Enfim formei-me em 1983!Terminei?Não! Mais 2 anos de residência médica!E a pós-graduação mais alguns anos!!
Estava feliz, pois iria abrir meu consultório médico!Veio meu nº de registro profissional no órgão de classe: 4396876!(Números novamente!).
Começou novamente minha saga: Conta bancaria nº6895-9, que para movimentá-la precisa de senha (Outro número!), Cartão de Crédito (Não Recomendo!) nº003987639876328, mais Cartão de Crédito nº09876986358745 (Mais senhas, ou seja, mais números!), Nº Telefone Fixo: 6985987, Nº Celular: 88968796.
Acabou? Não! Nº do meu Plano de Saúde: 00596987639872365, pois saibam médico também fica doente!
Enfim, o endereço do meu consultório (outros números!): Av.Pedra Alta,nº381-sala:309-CEP:051236-Cidade:São Paulo - Estado:SP - Brasil.
Eis que surge o meu 1º paciente. Entra na sala. Senta-se. E começa a tecer suas queixas, no meio da conversa ele interrompe e diz: 
-Doutor, agarrei na prosa que me esqueci de apresentar-me, meu nome é: Um, Dois, Três de Oliveira Quatro!Prazer...!!!

Crônica: "DIGA 33, Doutor!"

                                                Crônica do Livro: "CAUSOS" CLÍNICOS                                                                
                              
                                                                                                                                                                                                                                                                                               Autor: Fernando Ortiz

Num dado momento, adentra o ambulatório um homem idoso,esguio, magro e austero com sobrancelhas espessas e cabelos brancos ralos e com um nariz aquilino proeminente, muito acentuado e que trazia um chapelão de palha firme na mão. Sem cerimônia senta-se à minha frente e começa enumerar varias queixas. Interrompi o meu interlocutor por um instante e pedi que ele repetisse as suas queixas uma a uma. O que intrigado o fez a contragosto. Tornei a interrompê-lo, já não dava mais para esconder minha aflição, pois comecei a sentir calafrios, minha tez escorria um gélido suor e também sentia associados dores musculares. Sinal de um quadro de hipertermia sugestivo de uma forte virose respiratória. Nesta altura não dava para dissimular, pois acompanhando o quadro manifestou-se também a coriza, a congestão nasal e adveio a tosse sem expectoração.
Sem dúvida nenhuma era o diagnóstico de uma forte gripe, provavelmente contraída nas noites frias dos Plantões do PS.
Peço desculpas a aquele senhor e explico que terei que passar o seu caso para que outro colega o atenda e expliquei que me encontrava adoentado, sentia que estava naquele momento, "ardendo" em febre!
Ele arregala os olhos, olha-me com espanto e dispara:
-Nunca vi um médico ficar doente!Esbravejou... Ocorreu-me por instantes, que fosse achincalhar-me, mas logo arrematou:
-Vou já procurar outro... Vá que este troço pega!
Estendi a mão para despedir-me, mas foi um gesto em vão.
Lá se foi aquele homem com suas queixas em direção do seu pré-traçado destino.
Levantei-me em seguida e retirei-me do local, estava com 39 graus de temperatura!
Provavelmente terei meu pulmão auscultado por algum colega, e na certa ele inevitavelmente, dirá: Diga 33,doutor!


ADENDO: Qualquer semelhança sobre o aspecto físico do personagem com algum notável escritor, não terá sido mera coincidência, mas algo intencional do autor, os traços da caricatura acima revelam o ilustre escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, autor de grandes obras como: "Auto da Compadecida", "Romance da Pedra do Reino”, entre outras.
É o nosso pequeno tributo a este grande escritor da literatura brasileira!