domingo, 30 de janeiro de 2011

BIOGRAFIA: ERIC HOBSBAWM

Eric John Earnest Hobsbawm (Alexandria, 9 de Junho de 1917) é um historiador  reconhecido internacionalmente.Seu trabalho é um estudo da construção das tradições no contexto do Estado-nação. Ele argumenta que muitas vezes as tradições são inventadas por elites nacionais para justificar a existência e importância de suas respectivas nações.
Em 1933, Hobsbawm mudou-se para Londres ,por ter ganhado uma bolsa para estudar na Universidade de Cambridge, Hobsbawn formou-se em História. Uma de suas preocupações é aprimorar as análises históricas para criar mecanismos mais eficientes de predições econômicas e sociais. Ele mesmo faz algumas em seus livros - como a dificuldade de Israel se manter no Oriente Médio se mantiver apenas a força militar como apoio. Tornou-se militante político de esquerda e ingressou no Partido Comunista da Grã-Bretanha.Durante a Segunda Guerra Mundial (1939/1945), participou de mais um importante período do século XX, ao integrar o Exército Britânico contra os nazistas. Foi responsável por trabalhos de inteligência, pois dominava quatro idiomas. Com o fim da guerra, Hobsbawn retornou à Universidade de Cambridge para o curso de doutorado. Também nessa época juntou-se a alguns colegas e formou o Grupo de Historiadores do Partido Comunista.
Foi membro do grupo de historiadores marxistas britânicos, como Christopher Hill, Rodney Hilton e Edward Palmer Thompson que, nos anos 60, diante da desilusão com o stalinismo, buscaram entender a história da organização das classes populares em termos de suas lutas e ideologias, através da chamada "História Social".
Para analisar a história do trabalhismo e os diversos aspectos que a envolvem, como as revoluções burguesas, o processo de industrialização, as diferentes manifestações de resistência, luta e revolta da classe trabalhadora, Hobsbawn dedicou-se à interpretação do século XIX.
Sobre esse período,publicou estudos importantes, como "Era das Revoluções" ,"A Era do Capital"  e "A Era dos Impérios" . Hobsbawn é responsável por análises aprofundadas sobre aquilo que chama de “o breve século XX”.
Um desses livros, em especial, rendeu-lhe reconhecimento e prestígio: "A Era dos Extremos", lançado em 1994, na Inglaterra, tornou-se uma das obras mais lidas e indicadas sobre a história recente da humanidade.Também importante no conjunto de sua obra é seu livro mais recente, "Tempos Interessantes", publicado em 2002.Considerado um dos historiadores atuais mais importantes, Hobsbawm, além de  militante de esquerda, continua utilizando o método marxista para a análise da História, sempre a partir do princípio da luta de classes. É membro da Academia Britânica e da Academia Americana de Artes e Ciências. Foi professor de História no Birkbeck College (Universidade de Londres) e ainda é professor da New School for Social Research de Nova Iorque.

Livros publicados

  • A Era das Revoluções
  • Era do Capital
  • A Era dos Impérios
  • Era dos Extremos
  • Sobre História
  • Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1979 (Segunda Edição)
  • História Social do Jazz
  • Pessoas Extraordinárias: Resistência, Rebelião e Jazz
  • Nações e Nacionalismo desde 1780
  • Tempos Interessantes (autobiografia)
  • Os Trabalhadores: Estudos Sobre a História do Operariado
  • Mundos do Trabalho: Novos Estudos Sobre a História Operária
  • Revolucionários: Ensaios Contemporâneos
  • Estratégias para uma Esquerda Racional
  • Ecos da Marselhesa : dois séculos revêem a Revolução Francesa / Eric J. Hobsbawm ; tradução Maria Celia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • As Origens da Revolução Industrial/ tradução de Percy Galimberti São Paulo: Global Editora, 1979.

EM TEMPO:ENTREVISTA COM ERIC HOBSBAWM

Eric Hobsbawm "Lula é o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. No Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles"
Por Martin Granovsky

Em junho ele completa 92 anos. Lúcido e ativo, o historiador que escreveu "Rebeldes Primitivos", "A Era da Revolução" e a "História do Século XX", entre outros livros, aceitou falar de sua própria vida, da crise de 30, do fascismo e do antifascismo e da crise atual.
Hobsbawm aparece na porta da embaixada da Alemanha, em Londres. São pouco mais de três da tarde na bela Belgrave Square e se enxergam as bandeiras das embaixadas por trás das copas das árvores. De óculos, chapéu na cabeça e um casaco muito pesado, cumprimenta. Tem mãos grandes e ossudas, mas não parecem as mãos de um velho. Nenhuma deformação de artrite as atacou. Rapidamente uma pequena prova demonstra que as pernas de Hobsbawm também estão em boa forma. Com agilidade desce três degraus que levam do corrimão a calçada. Parece enxergar bem. Tem uma bengala na mão direita. Não se apóia nela, mas talvez a use como segurança, em caso de tropeçar, ou como um sensor de alerta rápido que detecta degraus, poças e, de imediato, o meio-fio da calçada. Hobsbawm é alto e magro. Não pede ajuda. O motorista do seu carro lhe abre a porta do jaguar preto. Entra no carro com facilidade. O carro é grande, por sorte, e cabe, mas a viagem é curta.


O carro dá meia volta na Belgrave Square e pára na frente de uma casa branca de três andares, com uma varanda rodeada de colunas e a porta de madeira pesada. Por algum motivo mágico o motorista de cabelos brancos com uma mecha sobre o rosto,com traje azul e sorridente , já abre a porta a Hobsbawm. O motorista sorri quando Hobsbawm desce. O professor lhe devolve a simpatia enquanto sobe com facilidade num hall onde à direita se vê uma enorme imagem de José de San Martin. À esquerda do corredor, uma grande sala. O chá está servido. Outro quadro do mesmo tamanho que o de San Martin. É Simon Bolívar. E também é Bolívar o cavalheiro do busto sobre o aparador.

Quanto chá tomaram Bolívar e San Martin antes de saírem de Londres para a América do Sul, em princípios do século XIX, para cumprir seus planos de independência?

Hobsbawm pega a primeira taça e quer ser quem faz a primeira pergunta.

- Como está a Argentina? - interroga mas não muito, porque não espera e comenta – No ano passado a Presidenta Cristina esteve para vir a Londres para uma reunião de presidentes progressistas e pediu para me ver. Eu disse sim, mas ela não veio. Não foi sua culpa. Estava no meio do confronto com a Sociedade Rural.

Hobsbawm fala um inglês perfeito e indaga:
- O que aconteceu com esse conflito?

Durante a explicação, o professor inclina a cabeça, mais curioso que antes, enquanto com a mão direita seu garfo tenta cortar uma torta de maçã. É uma tarefa difícil. Então se desconcentra da torta e fixa o olhar esperando, agora sim, alguma pergunta.

- O mundo está complicado – afirma ainda mantendo a iniciativa. Não quero cair em slogans, mas é indubitável que o Consenso de Washington morreu. A desregulação selvagem já não é somente má: é impossível. Há que se reorganizar o sistema financeiro internacional. Minha esperança é que os líderes do mundo se dêem conta de que não se pode renegociar a situação para voltar atrás, senão que há que se redesenhar tudo em direção ao futuro.

A Argentina experimentou várias crises, a última forte em 2001. Em 2005 o presidente Néstor Kirchner, de acordo com o governo brasileiro, que também o fez, pagou ao FMI e desvinculou a Argentina do organismo para que o país não continuasse submetido a suas condicionalidades.

- É que a esta altura se necessita de um FMI absolutamente distinto, com outros princípios que não dependam apenas dos países mais desenvolvidos e em que uma ou duas pessoas tomam as decisões. É muito importante o que o Brasil e a Argentina estão propondo, para mudar o sistema atual. Como estão as relações de vocês?

- Muito bem

- Isso é muito importante. Mantenham-nas assim. As boas relações entre governos como os de vocês são muito importantes em meio a uma crise que também implica riscos políticos. Para os padrões estadunidenses, o país está girando à esquerda e não à extrema direita. Isso também é bom. A Grande Depressão levou politicamente o mundo para a extrema direita em quase todo o planeta, com exceção dos países escandinavos e dos Estados Unidos de Roosevelt. Inclusive o Reino Unido chegou a ter membros do Parlamento que eram de extrema direita [e começa a entrevista propriamente].

- E que alternativa aparece?

- Não sei. Sabe qual é o drama? O giro à direita teve onde se apoiar: nos conservadores. O giro à esquerda também teve em quem descansar: nos trabalhistas.

- Os trabalhistas governam o Reino Unido.

- Sim, mas eu gostaria de considerar um quadro mais geral. Já não existe esquerda tal como era.

- Isso lhe é estranho?

- Faço apenas o registro.

- A quê se refere quando diz “a esquerda tal como era”?

- Às distintas variantes da esquerda clássica. Aos comunistas, naturalmente. E aos socialdemocratas. Mas, sabe o que acontece? Todas as variantes da esquerda precisam do Estado. E durante décadas de giro à direita conservadora, o controle do Estado se tornou impossível.

- Por que?

- Muito simples. Como você controla o estado em condições de globalização? Convém recordar que, em princípios dos anos 80 não só triunfaram Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Na França, François Miterrand não obteve uma vitória.

- Havia vencido para a presidência em 1974 e repetiu a vitória em 1981.

- Sim. Mas quando tentou uma unidade das esquerdas para nacionalizar um setor maior da economia, não teve poder suficiente para fazê-lo. Fracassou completamente. A esquerda e os partidos socialdemocratas se retiraram de cena, derrotados, convencidos de que nada se podia fazer. E, então, não só na França como em todo mundo ficou claro que o único modelo que se podia impor com poder real era o capitalismo absolutamente livre.

- Livre, sim. Por que diz “absolutamente”?

- Porque com liberdade absoluta para o mercado, quem atende aos pobres? Essa política, ou a política da não-política, é a que se desenvolveu com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. E funcionou – dentro de sua lógica, claro, que não compartilho – até a crise que começou em 2008. Frente à situação anterior a esquerda não tinha alternativa. E frente a esta? Prestemos atenção, por exemplo, à esquerda mais clássica da Europa. É muito débil na Europa. Ou está fragmentada. Ou desapareceu. A Refundação Comunista na Itália é débil e os outros ramos do ex Partido Comunista Italiano estão muito mal. A Esquerda Unida na Espanha também está descendo ladeira abaixo. Algo permaneceu na Alemanha. Algo na França, como Partido Comunista. Nem essas forças, nem menos ainda a extrema esquerda, como os trotskistas, e nem sequer uma socialdemocracia como a que descrevi antes alcançam uma resposta a esta crise a seus perigos, contudo. A mesma debilidade da esquerda aumenta os riscos.

- Que riscos?

- Em períodos de grande descontentamento como o que começamos a viver, o grande perigo é a xenofobia, que alimentará e será por sua vez alimentada pela extrema direita. E quem essa extrema direita buscará? Buscará atrair os “estúpidos” cidadãos que se preocupam com seu trabalho e têm medo de perdê-lo. E digo estúpidos ironicamente, quero deixar claro. Porque aí reside outro fracasso evidente do fundamentalismo de mercado. Deu liberdade para todos, e a verdadeira liberdade de trabalho? A de mudá-lo e melhorar em todos os aspectos? Essa liberdade não foi respeitada porque, para o fundamentalismo de mercado isso tinha se tornado intolerável. Também teriam sido politicamente intoleráveis a liberdade absoluta e a desregulação absoluta em matéria laboral, ao menos na Europa. Eu temo uma era de depressão.

- Você ainda tem dúvidas de que entraremos em depressão?

- Se você quiser posso falar tecnicamente, como os economistas, e quantificar trimestres. Mas isso não é necessário. Que outra palavra pode se usar para denominar um tempo em que muito velozmente milhões de pessoas perdem seu emprego? De qualquer maneira, até o momento no vejo um cenário de uma extrema direita ganhando maioria em eleições, como ocorreu em 1933, quando a Alemanha elegeu Adolf Hitler. É paradoxal, mas com um mundo muito globalizado um fator impedirá a imigração, que por sua vez aparece como a desculpa para a xenofobia e para o giro à extrema direita. E esse fator é que as pessoas emigrarão menos – falo em termos de emigração em massa – ao verem que nos países desenvolvidos a crise é tão grave. Voltando à xenofobia, o problema é que, ainda que a extrema direita não ganhe, poderia ser muito importante na fixação da agenda pública de temas e terminaria por imprimir uma face muito feia na política.

- Deixemos de lado a economia, por um momento. Pensando em política, o que diminuiria o risco da xenofobia?

- Me parece bem, vamos à prática. O perigo diminuiria com governos que gozem de confiança política suficiente por parte do povo em virtude de sua capacidade de restaurar o bem-estar econômico. As pessoas devem ver os políticos como gente capaz de garantir a democracia, os direitos individuais e ao mesmo tempo coordenar planos eficazes para se sair da crise. Agora que falamos deste tema, sabe que vejo os países da América Latina surpreendentemente imunes à xenofobia( Aversão a pessoas e coisas estrangeiras)?

- Por que?

- Eu lhe pergunto se é assim. É assim?

- É possível. Não diria que são imunes, se pensamos, por exemplo, no tratamento racista de um setor da Bolívia frente a Evo Morales, mas ao menos nos últimos 25 anos de democracia, para tomar a idade da democracia argentina, a xenofobia e o racismo nunca foram massivos nem nutriram partidos de extrema direita, que são muito pequenos. Nem sequer com a crise de 2001, que culminou o processo de destruição de milhões de empregos, apesar de que a imigração boliviana já era muito importante em número. Agora, não falamos dos cantos das torcidas de futebol, não é?

- Não, eu penso em termos massivos.

- Então as coisas parecem ser como você pensa, professor. E, como em outros lugares do mundo, o pensamento da extrema direita aparece, por exemplo, com a crispação sobre a segurança e a insegurança das ruas.

- Sim, a América Latina é interessante. Tenho essa intuição. Pense num país maior, o Brasil. Lula manteve algumas idéias de estabilidade econômica de Fernando Henrique Cardoso, mas ampliou enormemente os serviços sociais e a distribuição. Alguns dizem que não é suficiente...

- E você, o que diz?

- Que não é suficiente. Mas que Lula fez, fez. E é muito significativo. Lula é o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. E ninguém o havia feito nunca na história desse país. Por isso hoje tem 83% de popularidade, apesar dos problemas prévios às últimas eleições. Porque no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles, desenvolvendo ao mesmo tempo a indústria e a exportação de produtos manufaturados. A desigualdade ainda assim segue sendo horrorosa. Mas ainda faltam muitos anos para mudar as cosias. Muitos.

- E você pensa que serão de anos de depressão mundial

- Sim. Lamento dizê-lo, mas apostaria que haverá depressão e que durará alguns anos. Estamos entrando em depressão. Sabem como se pode dar conta disso? Falando com gente de negócios. Bom, eles estão mais deprimidos que os economistas e os políticos. E, por sua vez, esta depressão é uma grande mudança para a economia capitalista global.

- Por que está tão seguro desse diagnóstico?

- Porque não há volta atrás para o mercado absoluto que regeu os últimos 40 anos, desde a década de 70. Já não é mais uma questão de ciclos. O sistema deve ser reestruturado.

- Posso lhe perguntar de novo por que está tão seguro?

- Porque esse modelo não é apenas injusto: agora é impossível. As noções básicas segundo as quais as políticas públicas deviam ser abandonadas, agora estão sendo deixadas de lado. Pense no que fazem e às vezes dizem, dirigentes importantes de países desenvolvidos. Estão querendo reestruturar as economias para sair da crise. Não estou elogiando. Estou descrevendo um fenômeno. E esse fenômeno tem um elemento central: ninguém mais se anima a pensar que o Estado pode não ser necessário ao desenvolvimento econômico. Ninguém mais diz que bastará deixar que o mercado flua, com sua liberdade total. Não vê que o sistema financeiro internacional já nem funciona mais? Num sentido, essa crise é pior do que a de 1929-1933, porque é absolutamente global. Nem os bancos funcionam.

- Onde você vivia nesse momento, no começo dos anos 30?

- Nada menos que em Viena e Berlim. Era um menino. Que momento horroroso. Falemos de coisas melhores, como Franklin Delano Roosevelt.

- Numa entrevista para a BBC no começo da crise você o resgatou.

- Sim, e resgato os motivos políticos de Roosevelt. Na política ele aplicou o princípio do “Nunca mais”. Com tantos pobres, com tantos famintos nos Estados Unidos, nunca mais o mercado como fator exclusivo de obtenção de recursos. Por isso decidiu realizar sua política do pleno emprego. E desse modo não somente atenuou os efeitos sociais da crise como seus eventuais efeitos políticos de fascistização com base no medo massivo. O sistema de pleno emprego não modificou a raiz da sociedade, mas funcionou durante décadas. Funcionou razoavelmente bem nos Estados Unidos, funcionou na França, produziu a inclusão social de muita gente, baseou-se no bem-estar combinado com uma economia mista que teve resultados muito razoáveis no mundo do pós-Segunda Guerra. Alguns estados foram mais sistemáticos, como a França, que implantou o capitalismo dirigido, mas em geral as economias eram mistas e o Estado estava presente de um modo ou de outro. Poderemos fazê-lo de novo? Não sei. O que sei é que a solução não estará só na tecnologia e no desenvolvimento econômico. Roosevelt levou em conta o custo humano da situação de crise.

- Quer dizer que para você as sociedades não se suicidam.

(Pensa) – Não deliberadamente. Sim, podem ir cometendo erros que as levam a catástrofes terríveis. Ou ao desastre. Com que razoabilidade, durante esses anos, se podia acreditar que o crescimento com tamanho nível de uma bolha seria ilimitado? Cedo ou tarde isso terminaria e algo deveria ser feito.

- De maneira que não haverá catástrofe.

- Não me interessam as previsões. Observe, se acontece, acontece. Mas se há algo que se possa fazer, façamos-no. Não se pode perdoar alguém por não ter feito nada. Pelo menos uma tentativa. O desastre sobrevirá se permanecermos quietos. A sociedade não pode basear-se numa concepção automática dos processos políticos. Minha geração não ficou quieta nos anos 30 nem nos 40. Na Inglaterra eu cresci, participei ativamente da política, fui acadêmico estudando em Cambridge. E todos éramos muito politizados. A Guerra Civil espanhola nos tocou muito. Por isso fomos firmemente antifascistas.

- Tocou a esquerda de todo o mundo. Também na América Latina

- Claro, foi um tema muito forte para todos. E nós, em Cambridge, víamos que os governos não faziam nada para defender a República. Por isso reagimos contra as velhas gerações e os governos que as representavam. Anos depois entendi a lógica de por quê o governo do Reino Unido, onde nós estávamos, não fez nada contra Francisco Franco. Já tinha a lucidez de se saber um império em decadência e tinha consciência de sua debilidade. A Espanha funcionou como uma distração. E os governos não deviam tê-la tomado assim. Equivocaram-se. O levante contra a República foi um dos feitos mais importantes do século XX. Logo depois, na Segunda Guerra...

- Pouco depois, não? Porque o fim da Guerra Civil Espanhola e a invasão alemã da Tchecoslováquia ocorreu no mesmo ano.

- É verdade. Dizia-lhe que logo depois o liberalismo e o comunismo tiveram uma causa comum. Se deram conta de que, assim não fosse, eram débeis frente ao nazismo. E no caso da América Latina o modelo de Franco influenciou mais que o de Benito Mussolini, com suas idéias conspiratórias da sinarquia, por exemplo. Não tome isso como uma desculpa para Mussolini, por favor. O fascismo europeu em geral é uma ideologia inaceitável, oposta a valores universais.

- Você fala da América Latina...

- Mas não me pergunte da Argentina. Não sei o suficiente de seu país. Todos me perguntam do peronismo. Para mim está claro que não pode ser tomado como um movimento de extrema direita. Foi um movimento popular que organizou os trabalhadores e isso talvez explique sua permanência no tempo. Nem os socialistas nem os comunistas puderam estabelecer uma base forte no movimento sindical. Sei das crises que a Argentina sofreu e sei algo de sua história, do peso da classe média, de sua sociedade avançada culturalmente dentro da América Latina, fenômeno que creio ainda se mantém. Sei da idade de ouro dos anos 20 e sei dos exemplos obscenos de desigualdade comuns a toda a América Latina.

- Você sempre se definiu com um homem de esquerda. Também segue tendo confiança nela?

- Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. Foi uma forma extrema de aplicar a lógica do socialismo, assim como o fundamentalismo de mercado foi uma forma extrema de aplicação da lógica do liberalismo econômico. E também fracassou. A crise global é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado.

- Por que não?

- Se observar a história e o presente, não há dúvida alguma de que os problemas principais, sobretudo no meio de uma crise profunda, devem e podem ser solucionados pela ação política. O mercado não tem condições de fazê-lo.

(*) Martin Granovsky é analista internacional e presidente da agência de notícias Télam.

sábado, 22 de janeiro de 2011

BIOGRAFIA: JOSÉ J. VEIGA

 José Jacintho Pereira Veiga nasceu em Corumbá de Goiás, em 1915. Transferiu-se para o Rio de Janeiro depois que terminou os estudos secundários, onde se formou em Direito, em 1941.Estreou como ficcionista , com Os cavalinhos de Platiplanto.Dizia dever a escolha de seu nome literário à ajuda de Guimarães Rosa que, com argumentos convincentes, sugeriu José J. Veiga, por ocasião da publicação do livro de estréia em 1959. Seu romance "A Hora dos Ruminantes" foi publicado em 1966.
Como jornalista trabalhou em O Globo, na Tribuna da Imprensa e na BBC, em Londres. Foi também tradutor e redator da Reader's Digest e coordenou o Departamento Editorial da Fundação Getúlio Vargas.
Em 1973 ,publica o livro Sombras de reis barbudos.Outros
livros do autor: "Sombras de Reis Barbudos", "A Máquina Extraviada", "Objetos Turbulentos", "De Jogos e Festas", "A Usina Atrás do Morro", "Aquele Mundo de Vasabarros" , "Os Pecados da Tribo",e "O risonho cavalo do príncipe". Em 1997, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Faleceu aos 84 anos de idade, em setembro de 1999.

CRÔNICA:"Entre Irmãos"



Autor:José J. Veiga

O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade, ele regula pelos quinze anos, justamente o tempo que estive solto no mundo, sem contato nem notícia. Quanta coisa muda em dezessete anos, até os nossos sentimentos, e quanta coisa acontece — um menino nasce, cresce e fica quase homem e de repente nos olha na cara e temos que abrir lugar para ele em nosso mundo, e com urgência porque ele não pode mais ficar de fora.


A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me ao espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o meu pai. De repente fere-me a idéia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele.


Ao pensar nisso vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de ficar amigo, de derrubar todas as barreiras, de abrir-lhe o meu mundo e de entrar no dele. Faço-lhe perguntas e noto a sua avidez em respondê-las, mas logo vejo a inutilidade de prosseguir nesse caminho, as perguntas parecem-me formais e as respostas forçadas e complacentes. Há um silêncio incômodo, eu olho os pés dele, noto os sapatos bastante usados, os solados revirando-se nas beiradas, as rachaduras do couro como mapa de rios em miniatura, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer fútil eu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que lhe oferecesse um novo, e uma roupa nova para combinar. Mas seria esse o caminho para chegar a ele? Não seria um caminho simples demais, e por conseguinte inadequado?


Tenho tanta coisa a dizer, mas não sei como começar, até a minha voz parece ter perdido a naturalidade, sinto que não a governo, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha, e vejo que está me examinando, procurando decidir se devo ser tratado como irmão ou como estranho, e imagino que as suas dificuldades não devem ser menores do que as minhas. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Por que falar em casa? E qual a importância de muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa, há muito tempo que tenho morado em hotel. Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver em hotel, e conta que toda vez que faz reparos à comida mamãe diz que ele deve ir para um hotel, onde pode reclamar e exigir. De repente o fascínio se transforma em alarme, e ele observa que se eu vivo em hotel não posso ter um cão em minha companhia, o jornal disse uma vez que um homem foi processado por ter um cão em um quarto de hotel. Não me sinto atingido pela proibição, se é que existe, nunca pensei em ter um cão, não resistiria me separar dele quando tivesse que arrumar as malas, como estou sempre fazendo; mas devo dizer-lhe isso e provocar nele uma pena que eu mesmo não sinto? Confirmo a proibição e exagero a vigilância nos hotéis. Ele suspira e diz que então não viveria num hotel nem de graça.


Ficamos novamente calados e eu procuro imaginar como será ele quando está com seus amigos, quais os seus assuntos favoritos, o timbre de sua risada quando ele está feliz e despreocupado, a fluência de sua voz quando ele pode falar sem ter que vigiar as palavras. O telefone toca lá dentro e eu fico desejando que o chamado seja para um de nós, assim teremos um bom pretexto para interromper a conversa sem ter que inventar uma desculpa; mas passa-se muito tempo e perco a esperança, o telefone já deve até ter sido desligado. Ele também parece interessado no telefone, mas disfarça muito bem a impaciência. Agora ele está olhando pela janela, com certeza desejando que passe algum amigo ou conhecido que o salve do martírio, mas o sol está muito quente e ninguém quer sair à rua a essa hora do dia. Embaixo na esquina um homem afia facas, escuto o gemido fino da lâmina no rebolo e sinto mais calor ainda. Quando eu era menino tive uma faca que troquei por um projetor de cinema feito por mim mesmo — uma caixa de sapato dividida ao meio, um buraquinho quadrado, uma lente de óculos — e passava horas à beira do rego afiando a faca, servia para descascar cana e laranja. Vale a pena dizer-lhe isso ou será muita infantilidade, considerando que ele está com dezessete anos e eu tinha uns dez naquele tempo? É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade.


Uma mulher entra na sala, reconheço nela uma de nossas vizinhas, entra com o ar de quem vem pedir alguma coisa urgente. Levanto-me de um pulo para me oferecer; ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos interromper, pede desculpa e desaparece. Não sei se consegui disfarçar um suspiro, detesto aquela consideração fora de hora, e sou capaz de jurar que meu irmão também pensa assim. Olhamo-nos novamente já em franco desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro, mas compreendemos também que nada podemos fazer para nos libertar. Ele diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão desnecessária — e idiota — que nem me dou ao trabalho de responder.


Francamente já não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre , não sei como fugir daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaçado que reflete uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma catástrofe nos salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio, mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda. Sinto o suor escorrendo frio por dentro da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem perder para sempre alguma coisa muito importante, e como explicar depois a minha conduta quando eu puder examiná-la de longe e ver o quanto fui inepto? Não, basta de fugas, preciso ficar aqui sentado e purgar o meu erro.


A porta abre-se abruptamente e a vizinha entra de novo apertando as mãos no peito, olha alternadamente para um e outro de nós e diz, numa voz que mal escuto:


— Sua mãe está pedindo um padre.


Levantamos os dois de um pulo, dando graças a Deus — que ele nos perdoe — pela oportunidade de escaparmos daquela câmara de suplício.

CRÔNICA:"O Espelho"


Autor:José J. Veiga

Quando uma casa desmorona por velhice mais abandono, parece que alguma coisa da essência das pessoas que viveram nela e foram felizes — pelo menos por algum tempo ou alternadamente, já que ninguém é feliz sempre — fica pairando sobre os escombros e sobre utensílios abandonados ou esquecidos pela última família que morou nela; tanto que o poeta Pessoa escreveu num poema: "O que eu sou hoje é terem vendido a casa \ e terem morrido todos \ Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez...”. Aquela casa deve ter sido vendida várias vezes, depois envelheceu e por fim caiu.


O entulho ficou lá enfeando a rua e servindo de abrigo a mendigos e outros desses que têm a mania de pensar que são rebeldes, contestadores, não querem trato com o que chamam de sistema, mas não levam esse pensamento às últimas conseqüências: não abrem mão de um bom churrasco de gato nem do ato mais visceral de descarregar seus detritos quando se sentem pesados por dentro. Em todo caso, uma vez aliviados lembram-se de que fizeram uma concessão aos costumes e pensam que se redimem deixando de se limpar. Cada qual com a sua filosofia, como disse o general de granadeiros Contumácio Coribantes, vencedor da Batalha de Filigranas, que, como se sabe, mudou o rumo da história dos países do lado de baixo do Equador.


Então o entulho do desabamento ficou lá poluindo a rua e atraindo moscas, lagartixas, ratos, baratas e outros entes obnóxios, até que saqueadores tomaram conhecimento e começaram seu trabalho sistemático de extrair e carregar tudo em que vissem algum valor. Durante dias, talvez semanas, caminhões, kombis e até burros-sem-rabo, que ainda existem para quem sabe onde achá-los, transportaram ladrilhos, azulejos, grades, pias, torneiras, painéis de vidraças milagrosamente inteiros, portas, portais, caixilhos e esquadrias de janelas, fechaduras antigas ainda perfeitas, algumas sem as chaves; dois ou três armários enormes de madeira maciça para guardar louça ou roupa de cama e mesa e que os últimos moradores não quiseram carregar, certamente devido ao tamanho e ao peso. Esses foram desmontados a duras penas e transportados em um caminhão novo com placa de Vassouras, RJ, que alguém anotou por curiosidade.


Havia também um guarda-roupa, esse não tão antigo nem de boa madeira, tanto que não resistiu ao esborôo da casa, ficou todo quebrado e desconjuntado e não interessou a nenhum dos primeiros predadores. Mas quando chegou o segundo escalão, o chamado pente-fino, formado pelos que se contentam com sobras e rebotalhos, alguém deu uma olhada no guarda-roupa arrebentado, talvez esperando ou desejando que em alguma das muitas gavetas, quem sabe, tivesse ficado algum objeto de valor, ou mesmo dinheiro, é impressionante que existe de gente distraída no mundo, e muitas vezes o prejuízo de um distraído acaba sendo o lucro de um porfioso.


Dada a vista nas gavetas, quase todas ocadas por cupins, e nada encontrando, a pessoa notou que uma porta estava inteira e sã e poderia ser aproveitada, há sempre colocação para uma boa peça de madeira já curtida pelo tempo e vacinada contra cupins, podia servir para tampo de mesa, para um banco, para prateleiras de estante, era só esperar o encontro dela com quem a estivesse procurando, se esses encontros nunca acontecessem não haveria necessidade de belchiores, que sempre existiram e sempre existirão.


Depois de muito esforço, solavancos e engenho porque o puxador, também de madeira, estava quebrado e não dava pega, o pente-fino conseguiu abrir a porta — e teve nova surpresa. Do lado de dentro havia um espelho biselado de metro e meio de altura por sessenta e cinco centímetros de largura em perfeitíssimo estado, só que por cima da grossa camada de poeira podia se escrever nele com um dedo uma frase completa, como "Todo governo é delinqüente".


Razoável conhecedor de coisas antigas, o vasculhador de ruínas imaginou ou percebeu que o espelho tinha sido reaproveitado naquele armário: a moldura era diferente da madeira da porta, indicando que o espelho devia ter estado numa parede, talvez num salão, acima de um bufê ou de um sofá; ou num quarto de vestir, ou em uma loja de roupa ou calçado. E era importado, provavelmente da França, cujos artesãos inventaram esse tipo de corte chanfrado para evitar arestas nas margens de placas de vidro ou de madeira.


Mas — e o aço? Estaria ainda bom depois de tanta vivência e de tantos sacolejos?


Como saber, com tanta poeira encrostada em cima? Olhou em volta, viu umas folhas de jornal jogadas nas ruínas pelo vento. Pegou duas folhas, fez uma pelota, experimentou. A seco não adiantava, apenas espalhava a poeira. Só molhando o papel, mas onde achar água? O homem tinha expediente, não ia empacar por tão pouco. Procurou um lugar protegido da vista de quem passava na rua e urinou na pelota de jornal. Com o papel molhado limpou duas pequenas áreas do espelho e por elas deduziu que o aço devia estar bom de ponta a ponta.


Satisfeito com o achado, nosso homem tornou a fechar a porta do armário, esperando encontrá-lo intato quando voltasse com uma kombi de aluguel para levar o espelho; se ninguém o vira antes, certamente ninguém ia vê-lo naquele dia. Mas antes era preciso agradecer ao santo fumando um bom charuto ali mesmo, com calma; para que pressa, se o dia estava ganho? Depois de limpado e exposto no belchior, o espelho não demoraria a encontrar comprador.


Não errou na previsão. Logo no primeiro dia um decorador se interessou, indagou o preço. Achou caro, fez uma contraproposta. Experiente, o belchior não quis vender ao primeiro interessado, mas anotou nome e telefone. Horas depois entrou um casal jovem procurando uma mesa de jantar extensível. Não gostaram das únicas duas que havia, ambas precisando de conserto, o que encareceria o preço final. Quando saíam, viram o espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz baixa, compraram sem regatear.


Depois de muito debate e experimentação concluíram juntos que o espelho ficaria bem na sala de visitas, instalado horizontalmente atrás do sofá de três lugares. Oposto a ele, separando a sala de visitas da de jantar, ficava uma marquesa de jacarandá trabalhado, também comprada em belchior e restaurada por empalhador recomendado pelo próprio vendedor. De cada lado do sofá havia uma poltrona Luís XV estofada de veludo caramelo pelo artista Mário Cotas, mas para isso tiveram de esperar seis meses, a lista de encomendas das dele era enorme. Valeu a espera. A sala ficou coisa de revista, diziam os amigos.


E o casal ficou feliz com a sala. Quando saíam para algum compromisso social sentiam-se como exilados, e arranjavam pretextos para se retirarem mais cedo e voltarem depressa para a sala acolhedora. Logo perceberam que a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria uma sala plebéia, com móveis de sentar, tapetes, alguns quadros indiferentes, requififes vários — igual a um sem-número de outras.


Por causa do espelho, e parece que sem perceber, o casal ficou passando a maior parte do tempo na sala, e às vezes até dormiam nela, um no sofá, outro na marquesa. Por que faziam isso? Se perguntados, possivelmente não saberiam o que responder. Sentiam-se felizes na sala, seria a resposta singela. Mas não precisavam dar essa explicação a ninguém, primeiro porque eram sozinhos e a senhora que cuidava da casa e da cozinha dormia fora; segundo, porque achavam aquilo natural, e o que é natural carece de explicação. Quanto mais olhavam para o espelho e viam a sala e eles mesmos refletidos no vidro impecável mas quase etéreo, mais gostavam dele; e já estavam achando que o encontro deles com o espelho, ou o contrário — o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem — podia ser alguma arrumação do destino; e se consideravam escolhidos. Imagine se o espelho tivesse ido para um novo-rico qualquer, um capadócio, um bicheiro, um fala-gritado?


Mas, como disse um cantador, a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele deve estar prevenido porque se desmancha à-toa, basta um ventinho, uma palavra impensada.


Foi o que aconteceu, ao que parece, porque quando voltaram o filme e o repassaram para ver se entendiam, ficaram achando que a mudança começara numa tarde esplêndida de domingo, o sol iluminando a varanda da frente, crianças brincando, gritando e rindo embaixo na praça, o casal na sala gozando a companhia do espelho. De repente a mulher, serena, alegre, reflexiva, deitada na marquesa, olhando pela porta da varanda e torcendo um chumaço de cabelo com o polegar e o indicador da mão direita, disse em voz calma, mais como se fosse um pensamento que tivesse lhe escapado pela boca:


— Não acha que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho?


O homem, sempre atencioso, deitado no sofá, os pés descalços sobre uma almofada, os joelhos dobrados, lendo o segundo volume do Corpo de Baile de Guimarães Rosa, pousou-o aberto sobre o peito e olhou intrigado para a mulher.


— Como é mesmo, filha?


— Eu disse alguma coisa? — indagou a mulher, olhando-o intrigada.


— Disse que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho. Aliás, não disse; perguntou se eu não achava.


— Foi, é? Ora essa! — Voltou a torcer a mecha de cabelo por um instante, calada. — Bem, se eu disse, então é porque estava pensando.


Ele pegou novamente o livro, mudou de idéia antes de localizar o ponto onde havia parado. Pousou-o de novo no peito. A observação da mulher ficou interessando mais.


— Esse pensamento é novo ou já lhe ocorreu antes? — perguntou.


Como não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que dias antes no trabalho, ao ouvir uma colega falar do fim de semana altamente relaxante que passara com o marido e amigos em um hotel-fazenda no Vale do Paraíba, fizera uma comparação e ficara em dúvida se eles dois estariam certos fechando-se tanto em casa e em si mesmos por causa do espelho, como se o mundo lá fora não existisse; e se indagara se isso não acabaria prejudicando-os de alguma maneira.


— Bem, já que o assunto pulou a cerca, é porque chegou a hora. Então não vamos continuar fazendo de conta que ele não existe. Eu também tenho me preocupado com o espelho de uns dias para cá.


— É mesmo? Como assim? — disse ela, ao mesmo tempo em que passava da posição de semideitada para a de semi-sentada.


Um dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui conversando com Emer e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para eles para dizer qualquer coisa, tive uma sensação esquisita. Emer me perguntara sobre meninos de rua,sobre a matança. Quando dei minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram Emer e Zenaide. Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros. Esses aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles eram as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma vergonha, uma desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião verdadeira estava nas imagens refletidas. Fiquei horrorizado. Disfarcei, levantei, fui à varanda pretextando ter ouvido qualquer coisa lá fora. Felizmente você apareceu logo com o café.


— Me lembro que quando entrei com a bandeja você vinha da varanda. Só isso.


— Então eles também não devem ter notado. Ainda bem. Mas fiquei transtornado. Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles.


Ela olhou demoradamente para o espelho e disse: — Gostaria muito de pensar... pensar não, ter certeza ... que você tivesse imaginado isso.


— Eu também. Mas não dá para fraudar Foi real.


Não falaram mais no assunto, mas pensaram muito, cada um por si. De tardinha fizeram um lanche na sala de jantar, esforçando-se os dois para não falarem no espelho nem olharem para ele. Depois ligaram a televisão, nada de interessante. Que tal um cinema à noite? Consultaram o jornal, optaram por uma comédia inglesa, "O Garçom Venturoso", de Peter Ustinov. Os ingleses são bons em comédia, e Ustinov melhor ainda, lembra-se de "Vice-Versa"?


O filme é a história de um garçom de Charlotte Street que encontra a seu lado num banco do metrô uma bolsinha minúscula. Guarda-a no bolso para ver depois se contém algum valor. Quando a abre em casa, vê que tem um diamante do tamanho de ovo de codorna, com nota de venda de uma loja de Amsterdã. O preço, uma fortuna. O filme todo é o desespero do garçom para encontrar um lugar seguro onde esconder o diamante até poder dispor dele sem risco. Não tem experiência em atividades clandestinas e não pode consultar ninguém para não levantar suspeita. Não pode dividir o problema com a mulher porque ela tem coceira na língua. Todo esconderijo que imagina logo lhe parece escancarado. Levanta-se no meio da noite para mudar o diamante de lugar. Pensa engoli-lo para recuperá-lo no dia seguinte, e assim ir fazendo dia após dia, mas na primeira se tentativa quase morre engasgado, o raio do diamante bem podia ser um pouco menor.


O homem vive sonolento, cochila no trabalho, o chefe o adverte. Finalmente o pobre garçom conclui que não existe em toda Londres um lugar seguro para quem não tem diamantes esconder um diamante do tamaninho de um ovo de codorna. E resolve entregá-lo à polícia.


Em vez de distraí-los, o filme agravou as preocupações inconfessáveis do casal. Na mesma noite retiraram o espelho da parede, o que não foi difícil: bastou retirar com torques as três escápulas do alto, içar o espelho das três escápulas que o sustentavam embaixo, depois virá-lo de frente para a parede e pousá-lo no chão atrás do sofá.


No dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam negócio pela primeira proposta, como tinham feito quando da compra. Mas continuaram usando espelhos, ele para fazer a barba, ela para se pintar e pentear.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

RATO DE LIVRARIA: DICA DE LIVRO

RESENHA DO LIVRO:"OS ESPIÕES"-2009-AUTOR:LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO.(EDITORA ALFAGUARA-R$31,90)


Um história com suspense e humor.Quando chegou o primeiro envelope branco na Editora,por pouco ele não o lançou direto no lixo.Frustrado na vida profissional,desiludido com as mulheres e de ressaca,esse infeliz funcionário não costuma ter boa vontade com os outros.Mas algo chama sua atenção-a letra trêmula,a florzinha no lugar do pingo do i- e assim o envelope pousa em sua vida como um pássaro perdido.Amante de histórias policiais,o editor fica fascinado pelo texto,apesar dos erros gramaticais.O personagem da história começa à contar sua história com um amante secreto,para depois ameaçar suicidar-se.O editor aos poucos vai convencendo seus amigos de bar a acompanha-lo até Frondosa,cidade que reside a narradora da história Ariadne,numa derradeira tentativa de salva-la da morte anunciada.Enfim trata-se de uma missão fascinante quanto patética,mas a causa é nobre salvar alguém de um destino trágico!! 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

BIOGRAFIA: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)


Sérgio Marcos Rangel Porto, jornalista, radialista, teatrólogo e humorista., nasceu no Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 1923, e ficou famoso anos depois sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, emprestado à Oswald de Andrade (vide Memórias de Serafim Ponte Grande). 
Dizem seus estudiosos que no citado livro teria encontrado seu grande filão:a irreverência. Começou uma obra carioquíssima, até hoje insuperável, transpondo para  jornais, livros e revistas o saboroso coloquial do Rio de Janeiro. Afirmam, também, que as melhores crônicas são aquelas onde a disposição de desfazer o sentido de uma palavra ou de uma situação não se manifesta apenas no final do enredo, mas parece atingir a estrutura da narrativa; quer dizer, a partir de pistas falsas, a história é conduzida visando a um final que não acontece, substituído por outro, totalmente inesperado.
Traçou, em 12 palavras, o retrato de uma época , os tais anos dourados nada permissivos, quando o preconceito prevalecia, principalmente em matéria de sexo:
"Se peito de moça fosse buzina, ninguém dormia nos arredores daquela praça". Antes da liberação sexual, as praças e outros cantinhos escuros eram, então, um buzinaço.
Criador de Tia Zulmira, Rosamundo e Primo Altamirando, foi com seu Festival de Besteira que Assola o País - FEBEAPÁ, lançado em plena vigência da Redentora, apelido do golpe militar de 1964, que ele alcançou seu grande sucesso. Stanislaw afirmava ser difícil precisar o dia em que as besteiras começaram a assolar o Brasil, mas disse ter notado um alastramento desse festival depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que o filho tirara zero numa prova de matemática, embora sabendo tratar-se de um debilóide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista.
Na mesma época (1954) em que o jornalista Jacinto de Thormes publicou na revista Manchete a lista das "Mulheres Mais Bem Vestidas do Ano", Stanislaw, que escrevia na mesma revista sobre teatro-rebolado, não quis ficar por baixo e inventou a lista das "Mulheres Mais Bem Despidas do Ano". Ocasião que passou a usar uma expressão ouvida de seu pai — "Olha só que moça mais certa" — e estavam, assim, criadas as "certinhas" do Lalau. De 1954 a 1968 foram 142 as selecionadas. Dentre outras, podemos citar Aizita Nascimento, Betty Faria, Brigitte Blair, Carmen Verônica, Eloina, Íris Bruzzi, Mara Rúbia, Miriam Pérsia, Norma Bengell, Rose Rondelli, Sônia Mamede e Virgínia Lane.
Ao contrário do que parecia ser Sérgio Porto, nos últimos anos de vida tinha uma jornada nunca inferior a 15 horas de trabalho por dia."Só estou levantando o olho da máquina de escrever pra botar colírio".Para alguém que teve seu primeiro infarto ao 36 anos, era demais.
"Tunica, eu tô apagando". Essas foram as últimas palavras ditas pelo autor ao sofrer um novo e fulminante  infarto,vindo a falecer em 29 de setembro de 1968.

Bibliografia:

Livros publicados com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta:

- Tia Zulmira e Eu - Editora do Autor, 1961

- Primo Altamirando e Elas - Editora do Autor, 1962

- Rosamundo e os Outros - Editora do Autor, 1963

- Garoto Linha Dura - Editora do Autor, 1964

- FEBEAPÁ1 (Primeiro Festival de Besteira Que Assola o País), Editora do Autor, 1966

- FEBEAPÁ 2 (Segundo Festival de Besteira Que Assola o Pais), Editora Sabiá, 1967

- Na Terra do Crioulo Doido - FEBEAPÁ 3 - A Máquina de Fazer Doido - Editora Sabiá, 1968

Livros publicados com o nome de Sérgio Porto:

- A Casa Demolida - Editora do Autor/1963 (Reedição ampliada e revista de O Homem ao Lado - Livraria. José Olympio Editores)

- As Cariocas - Editora Civilização Brasileira, 1967


CRÔNICA:"Conto de Natal"



Autor:Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

Era um Papai-Noel mais subdesenvolvido do que - digamos - o Piauí. Uma barba mixuruquíssima, rala, encardida, que ele acabou por puxar para debaixo do queixo, na esperança de diminuir o calor.

Sim, porque fazia calor.

A calçada refletia por debaixo das calças dos transeuntes o seu bafo quente, o que ocorria também por debaixo das saias das passantes, mas esta imagem é mais refrescante e talvez não dê ao leitor a idéia do calor que fazia. A turba ignara ia e vinha, carregada de embrulhos, vítima da desonestidade dos comerciantes, mas, ávida de comprar presentinhos.

E o Papai Noel avacalhado ali na esquina, badalando. Era um sininho de som fino, que ele badalava meio sem jeito, como se estivesse disfarçando alguma coisa sem aquela dignidade de badalar de sino dos verdadeiros Papais- Noeis.

Também a roupa era mixa!  A blusa não tinha aquela vermelhidão dos Papais-Noeis de capa de revistas. Era desbotado igual daqueles componentes de blocos de sujo, no Carnaval carioca. Isto, inclusive, talvez fosse verdade: aquele Papai-Noel era tão vagabundo que era bem possível que tivesse aproveitado o uniforme do Carnaval anterior, para o Natal.

Tia Zulmira, protegida pela sombra de uma marquise, aguardava condução e observava o Papai Noel. Observava, por exemplo, que o Papai-Noel usava tênis (bossa nova natalina), observava que o Papai-Noel não fazia anúncio de coisa nenhuma, ao contrário de seus coleguinhas de outras esquinas, que traziam às costas grandes cartazes coloridos com os nomes das lojas da cidade.

A velha, num lampejo, percebeu tudo. Viu logo que, naquele Papai-Noel, tinha truque. E, apenas para confirmar a sua teoria, abriu a bolsa, retirou um pedaço de papel e escreveu:

— 500 cruzeiros no grupo do gato — 200 — na centena 463 .

Enrolou o papelzinho no dinheiro correspondente e, saindo de debaixo da marquise, passou disfarçadamente pelo Papai-Noel e espalmou na sua mão a fezinha. Papai Noel apanhou tudo e disse baixinho:

— Obrigado, minha senhora. Um bom Natal para a senhora também.

CRÔNICA:"Fábula dos Dois Leões"


Autor:Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

Diz que eram dois leões que fugiram do Jardim Zoológico. Na hora da fuga cada um tomou um rumo, para despistar os perseguidores. Um dos leões foi para as matas da Tijuca e outro foi para o centro da cidade. Procuraram os leões de todo jeito mas ninguém encontrou. Tinham sumido, que nem nota de cem.

Vai daí, depois de uma semana, para surpresa geral, o leão que voltou foi justamente o que fugira para as matas da Tijuca. Voltou magro, faminto e alquebrado. Foi preciso pedir a um deputado do PMDB que arranjasse vaga para ele no Jardim Zoológico outra vez, porque ninguém via vantagem em reintegrar um leão tão carcomido assim. E, como deputado do PMDB arranja sempre colocação aqui e acolá, o leão foi reconduzido à sua jaula.

Passaram-se oito meses e ninguém mais se lembrava do leão que fugira para o centro da cidade quando, lá um dia, o bruto foi recapturado. Voltou para o Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo saúde. Apresentava aquele ar próspero do Senador José Sarney que, para certas coisas, também é leão.

Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da Tijuca disse pro coleguinha: — Puxa, rapaz, como é que você conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa saúde? Eu, que fugi para as matas da Tijuca, tive que pedir arrego, porque quase não encontrava o que comer, como é então que você... vá, diz como foi.

O outro leão então explicou: — Eu meti os peitos e fui me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e ninguém dava por falta dele.

—  E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?

— Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu cometi um erro gravíssimo. Comi o diretor, idem um chefe de seção, funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que eu comi o cara que servia o cafezinho... me apanharam.

CRÔNICA:"Não Sei se Você se Lembra"


Autor:Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

ENTÃO, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de comer casquinha de siri. Havia anos que nós não comíamos casquinhas de siris e a vontade surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-me bem — e não sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer as casquinhas de siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de mulher.


Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde se poderia encontrar uma boa casquinha de siri, para se comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo aos cântaros, e acompanhando o delicioso crustáceo um choppinho para rebater de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de comer casquinha de siri.


Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia maravilhosas casquinhas de siris, ao cair da tarde. Não sei se você se lembra que ele frisou serem aquelas as melhores casquinhas de siris do Rio.


Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia casquinhas de siris comíveis e, então, nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade ainda de comer casquinhas de siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar boca para uma casquinha de siri que só comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo estomacal para elas, após o almoço.


Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana as casquinhas de siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o jogo todo a pensar nas casquinhas de siris que comeríamos ao sair do Maracanã.


Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. Então — não sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse que a casquinha de siri já tinha acabado.

CRÔNICA:"Vamos Acabar Com Esta Folga".



Autor:Stanislaw Ponte Preta

(Sérgio Porto)

O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos, sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo.

De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou que não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada pela provocação e logo um turco, tão forte como o alemão, levantou-se de lá e perguntou:

— Isso é comigo?

— Pode ser com você também — respondeu o alemão.

Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia homem ali dentro pra ele. Queimou-se então um português que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e não conversou. Partiu para cima do alemão e não teve outra sorte. Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.

O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e também entrou bem. E depois do inglês foi a vez de um francês, depois de um norueguês etc. etc. Até que, lá do canto do café levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de picardia para perguntar, como os outros:

— Isso é comigo?

O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do alemão. Parou perto, balançou o corpo e... pimba! O alemão deu-lhe uma porrada na cabeça com tanta força que quase desmonta o brasileiro.

Como,? Qual é o fim da história? Pois a história termina aí. Termina aí que é pros brasileiros perderem essa mania de pisar macio e pensar que são mais malandros do que os outros.

CRÔNICA:"História de um Nome"


Autor:Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna - dizia:

— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o "Seu" Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — "wag" de Wagner e "em" de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha "A Estante" — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.

Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga

CRÔNICA:"Prova Falsa"


Autor:Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

Quem teve a idéia foi o padrinho da caçula - ele me conta. Trouxe o cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho. Ele até que não é contra isso de se ter um animalzinho em casa, desde que seja obediente e com um mínimo de educação.

— Mas o cachorro era um chato — desabafou.

Desses cachorrinhos de raça, cheio de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono da casa.

— Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de francesa.

Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro ficam mais por baixo que tapete de porão. Quando cruzavam num corredor ou qualquer outra dependência da casa, o desgraçado rosnava ameaçador, mas quando a patroa estava perto abanava o rabinho, fingindo-se seu amigo.

— Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico, minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro fingido e eu é que implicava com o "pobrezinho".

Num rápido balanço poderia assinalar: o cachorro comeu oito meias suas, roeu a manga de um paletó de casimira inglesa, rasgara diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava para locais incríveis. A vida lá em sua casa estava se tornando insuportável. Estava vendo a hora em que se desquitava por causa daquele bicho cretino. Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e era uma choradeira das crianças e uma espinafração da mulher.

— Você é um desalmado — disse ela, uma vez.

Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do adversário. O cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete da sala. Fez duas na boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que fez em cima do vestido novo de sua mulher.

— Aí mandaram o cachorro embora? — perguntei.

— Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova residência.

— Ué... mas você não o detestava? Como é que arranjou essa sopa pra ele?

— Problema da consciência — explicou: — O pipi não era dele.
E suspirou cheio de remorso.

CRÔNICA:"A Divisão"


Autor:Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)

Você poderá ficar com a poltrona, se quiser. Mande forrar de novo, ajeitar as molas. É claro que sentirei falta. Não dela, mas das tardes em que aqui fiquei sentado, olhando as arvores. Estas sim, eu levaria de bom grado : as árvores, a vista do morro, até a algazarra das crianças lá embaixo, na praça. 0 resto dos moveis — são tão poucos! — podemos dividir de acordo com nossas futuras necessidades.
A vitrola esta, tão velha que o melhor é deixá-la ai mesmo, entregue aos cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você quanto eu haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas, mais modernas, dotadas de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor: alta-fidelidade.
Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as valsas, as canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o Mozart e Bing Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas antigos e estes chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e jogados no lixo. É justo e honesto.
Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não estou querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim. Será um prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando livrarias. Aos poucos irei refazendo toda esta biblioteca, então com um caráter mais pessoal. Fique com os livros todos, portanto. E conseqüentemente com a estante também.
Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos conhecermos. Também os dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja só o que está escrito nela: 12-1-48. Fique com toda essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs e, mais do que eles, a chamada arte popular, principalmente quando ela se resume nesses bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote de melado e moringa de água, nada que foi feito com barro presta. Nem o homem.
Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as lembranças passíveis de serem destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens, souvenirs. Que não reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e que não possa ser entre nos dividido.
Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta jarra. Eu ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo está razoavelmente dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.