sábado, 3 de dezembro de 2011

Crônica:"BURBURINHO NA CALADA DA NOITE"

                                                         Crônica do Livro: "CAUSOS CLÍNICOS"                                          




                                                                                                   

                                                                                                                                 Autor:Fernando Ortiz
                                                                  
 
O Plantão mal começara e muitos já eram os pacientes que se aglomeravam esperando atendimento médico.Eu, naturalmente ainda residente de neurologia,aflito comentava com os outros colegas que aquela seria mais uma noite tumultuada!!
Na Enfermaria de clínica Médica,o número era ainda maior,sem contar a Pediatria e as demais Enfermarias.Misturavam-se pacientes que realmente precisavam de Pronto-Atendimento com outros típicamente ambulatorias.
Porém,naquela fatídica noite,após uma maratona de atendimentos,exausto e esperando contar com a cumplicidade complacente do corpo de enfermagem fui tentar repousar no dormitório dos plantonistas,mas não demorou muito,uma implacável enfermeira chamou-me para mais um atendimento,tratava-se segundo ela de uma senhora de avançada idade que inflexível insistia em ser atendida.Ponderava a enfermeira que esta senhora seria a última paciente daquela inesquecível noite.Ciente que não era um caso de urgência fui ao encontro da tal senhora entre um bocejo e outro,isso já era altas horas de uma madrugada fria.Abrí a porta da sala de espera e automaticamente perguntei:
-Quem é o próximo?Levantou-se da cadeira uma senhora um tanto irritada pela minha demora e de imediato crispou-me com um olhar fulminante.Sem titubear arrisquei:
-Vamos entrar,eu disse.
E iniciei as perguntas de praxe da Anamnese,ela olhava-me com desconfiança e mal respondia minhas perguntas.Terminado o exame físico,disse à ela:
-A senhora tem isso,mais isso e mais isso.Vou receitar alguns medicamentos,mas se a senhora não melhorar terá que retornar para uma nova consulta!!
Ela balançou a cabeça negativamente.
-Não,por quê? Indaguei.
-Eu não vim até aqui por causa destas baboseiras!Retrucou a senhora.
Apoio a cabeça com uma das mãos,franzo a testa e após um longo bocejo,insisto na pergunta:
-Então o quê a trouxe a esta hora da madrugada ao PS,minha senhora?!?
Ao que ela retrucou de imediato:
-O doutor ainda não percebeu todo o falatório...Pois eles não me deixam dormir!!
Intrigado resolvo inquirir a paciente:
-Mas, do quê a senhora esta se referindo?
Ela do alto dos seus setenta anos,com altivez arrematou:
-São eles,doutor...Insistiu.São eles!!Ficam conversando a noite inteira e não me deixam dormir!!!
-Ufa!!Respirei aliviado,finalmente tinha compreendido o drama que afligia aquela senhora,e arrisquei meu palpite:
-São seus vizinhos,não são?São eles a causa da sua insônia?...É simples, basta um telefonema para uma Delegacia de Polícia próxima e pronto,estara resolvido o seu problema!!
A doce senhora arrebatadora,pôs-se em pé e com dedo em riste,fulminou:
-Bem se vê que o senhor ainda é um estudante de medicina,pois se de fato fosse um médico já teria entendido a extensão do meu sofrimento!!
Meio sem jeito, tentei contornar a situação e expliquei que eu era médico-residente daquele Hospital e que naquela noite estava de plantão no PS,expliquei que minhas intenções eram as melhores possíveis e para arrematar tentando minorar seu sofrimento,disse:
-Minha senhora,trata-se de um caso clínico simples.Isso tem cura fácil...Logo que a senhora chegar em sua casa ficara boa!!Arrisquei-me,mas o argumento foi em vão e de pronto retrucou a já indócil senhora:
-Boa uma ova!! Isso porque não esta acontecendo com o senhor!!...Eu já lhe disse e repito:Eles ficam conversando à noite inteira e não me deixam dormir!!
Resolvi naquele momento e quase vencido pelo sono,dar um basta naquela situação e questionei:
-ELES QUEM??
Ela fitou-me demoradamente e balançando a cabeça levemente com ar de desdém,sem hesitar respondeu-me com naturalidade:
-Oras...Meus joelhos,moço!!!Quem mais poderiam ser...A não ser estes dois...,eles resolvem tagarelar entre si à noite inteira e não me deixam dormir!!Contam um para o outro cada causo cabeludo,que fico até ruborizada com tanta sem-vergonhice!!
Enfim,sorri amarelo e outra vez bocejei,desta vez aliviado.Estava quase amanhecendo,era o fim de mais um Plantão!!
Neste caso lembrei-me de Alois Alzheimer,que descreveu em 1907,em uma mulher na terceira idade uma forma de demência senil de evolução lentamente progressiva,mas isso é outra História!!
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ADENDO:O fato ocorreu num Plantão de um Hospital de Ribeirão Preto(SP),quando na ocasião eu era médico residente em Neurologia, nos idos de 1984.

Crônica:"EPOPÉPIA BANCÁRIA"

                                                       Crônica do Livro: "CAUSOS"CLÍNICOS


                                                                                                                   
                                                                                                                Autor:Fernando Ortiz

Era hora do almoço, arrisquei ir ao banco, mesmo sabendo que era Dia de Pagamento. Atravessei a rua as pressas, não podia perder tempo. Adentrei o banco e tentei transpor a porta giratória, tentei... Mas foi em vão... Na primeira tentativa, acabei barrado. No rosto do guarda de segurança notei um sorriso triunfante. Tentei novamente e de novo fui barrado, sentia-me fisgado tal qual um peixe. O meu semblante já franzia diante da situação constrangedora. E o guarda balbuciou algumas palavras: Carrega algo de metal? E determinou, deposite na bandeja ao lado!
Imediatamente, esvaziei os bolsos: Celular, chaves, estetoscópio, caneta, moedas, carimbo médico, carteira... Pronto estava tudo lá a disposição daquele guarda com cara pouca amistosa!
Até que tive autorizada minha entrada no banco!Recolhi o mais rápido possível meus pertences e fui em direção ao caixa!E qual minha surpresa ao constatar aquilo que suspeitava!Dia de pagamento inevitavelmente iria deparar com filas enormes nos caixas!Recuei e resolvi dar meia volta e sair do Banco!Mas, tinha contas inadiáveis para pagar... 
Então resolvi arriscar os caixas eletrônicos, que milagrosamente estava um vazio, parece até que estava me esperando.
Dirigi-me até este caixa e comecei minha operação bancária, mas antes observei atentamente as instruções na tela e segui a risca os comandos: Introduza seu cartão... Assim o fiz!Retire seu cartão... Obedeci!Novamente introduza seu cartão... Lá fui eu!Digite sua senha... Tentei digitar, fui logo interrompido... Senha incorreta!Aperte a tecla "Corrige”... Assim procedi!Nova ordem: Introduza o seu cartão!Fiz. Nova Ordem: Digite sua senha!Desta vez digitei certo!Nova ordem na tela: Digite dia do seu nascimento!Fiz. Nova ordem: Digite o valor a ser sacado!Digitei R$200.00 e aguardei... E nada de aparecer o dinheiro!
Olhei para trás e uma fila já começava a se formar diante da minha demora. Inconformado bati varias vezes no orifício por onde as cédulas deveriam sair...E nada!

Notei que atrás de mim um senhor nissei de óculos e com terno e gravata se mostrava impaciente... Resolvi pedir ajuda, um guarda se aproximou e me aconselhou: Doutor utilize o caixa ao lado para fazer sua operação bancária!Eu ponderei que só faltava resgatar o dinheiro... Ele argumentou que talvez o caixa estivesse com problemas técnicos e eu não conseguiria efetuar meu saque!Vencido pelo argumento, fui ao caixa ao lado e comecei minha operação bancária, observei agora mais atentamente as instruções na tela e segui novamente a risca os comandos: Introduza seu cartão... Assim o fiz!Retire seu cartão... Obedeci!Novamente introduza seu cartão... La fui eu de novo!Digite sua senha... Digitei (Desta vez acertei!). Nova ordem: Introduza o seu cartão!Fiz. Nova Ordem na tela: Digite dia do seu nascimento!Fiz. Nova ordem: Digite o valor a ser sacado! Digitei duzentos reais e aguardei...

Enquanto isso o senhor nissei, no mesmo caixa que eu estava anteriormente conseguiu sacar duzentos reais!Opa!Exclamei. Tem algo de errado... Esse dinheiro é meu!O idoso nissei impassível fitou-me e diante de meu tom resoluto e incisivo calou-se e consentiu!Neste espaço de tempo notei que no caixa que me encontrava havia disponibilizado o valor solicitado, ou seja, duzentos reais!
Na confusão alertei o senhor para que não saísse de perto de mim até eu conferir meu saldo bancário, pois eu suspeitava até então que o dinheiro que ele sacara também era meu!E o homem de olhos amendoados e tez pálida, permaneceu impassível aguardando! Após alguns minutos a terrível confirmação na tela: Na minha conta bancária só constava o valor de um saque de R$200.00 e não dois saques do mesmo valor como havia deduzido!
Portanto, aquele dinheiro era dele!Esclarecida a trapalhada digital pedi mil perdões a aquele senhor nissei! Ele, desta vez furioso fulminou-me com o olhar, então se virou e saiu do banco a passos largos!Foi aí que percebi que em volta de mim havia se formada uma pequena roda de curiosos que com o desfecho da situação dissipou-se!Quanto a mim tratei  imediatamente de ir embora, sem olhar para trás!...A vergonha era grande! 

 

domingo, 20 de novembro de 2011

BIOGRAFIA: LULA FALCÃO



Jornalista com mais de 30 anos de experiência em redações, Lula Falcão atuou como repórter, redator, editor-assistente, editor e chefe de sucursal de alguns dos principais veículos de comunicação do País: O Globo, VEJA e o Estado de S. Paulo. Participou ainda do Centro de Criação de Projetos Especiais da Companhia de Notícias (CDN) e foi colaborador de publicações brasileiras em San Francisco e Nova York (EUA). Ganhou o prêmio de jornalismo (nacional) da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), em 1995. É co-autor de Frevo – 100 anos de Folia (história do frevo) e autor de Todo dia me Atiro do Térreo (ficção).

RESENHA DE LIVRO

 







“Todo dia me Atiro do Térreo”, livro de Lula Falcão, conta as histórias de Maria Lucia, personagem que escolheu as redes sociais para chutar o balde e pisar na jaca.

O livro Todo dia me atiro do Térreo conta a história da fictícia Maria Lucia por meio de um diário da própria personagem. Fracassada na vida real, ela escolheu as redes sociais para despejar doses de ironia, escárnio e bom humor em meio a bebedeiras e sexo virtual. Nesse meio tempo, tenta escrever um romance que se despedaça em posts no twitter, entre citações de Francis Bacon e Odair José. Todo dia me Atiro do Térreo – #tuiteira, do jornalista Lula Falcão, tem prefácio da escritora e roteirista Adriana Falcão e orelha do colunista Xico Sá.
“É um personagem urbano, que eu peguei de várias pessoas que conheço – na vida e nas redes sociais. Misturei tudo e criei um personagem de ficção”, explica Falcão. Maria Lúcia surgiu postando rápidas reflexões no blog do autor e, depois de muitas menções no twitter e facebook, conquistou o interesse dos leitores.
De acordo com o crítico Thiago Corrêa, a personagem revela os bastidores da sua rotina vazia em frente ao computador, expondo sua trajetória de solidão conectada à rede. Aos 30 e poucos anos ou 30 e tantos – a idade fica a cargo do leitor – Maria Lúcia não poupa sarcasmo para descrever a falta de sentido da sua vida, cuja carreira de atriz foi progressivamente lhe levando para os bastidores da produção cultural, no ritmo das rugas do tempo. “Apesar dos problemas, ela vai levando, pisando na jaca e chutando o balde”, conta Falcão. “Maria Lúcia é contraditória. É maluca. É cachaceira. É angustiada. É solitária. É viciada em Internet. É uma filósofa. É Atarantada. É a cara do nosso tempo”, escreve Adriana Falcão.
A vida da Maria Lucia é online, mas ela conta o que se passa e se passou em sua existência balzaquiana, onde quase tudo dá errado: projetos para as leis de incentivo que não vingam, falta de dinheiro, aluguel atrasado, bebedeiras, casos amorosos frustrados, empregos chatos, solidão, vodka, comprimidos tarja preta, boemia e uma dieta à base de miojo numa quitinete desarrumado. “O autor soube captar a desilusão de uma geração com fome de tudo, provocando uma leitura alucinante, de uma pegada só, em ritmo acelerado”, observa Corrêa.

"Todo dia me atiro do térreo".Lula Falcão.(1ª Edição).São Paulo:Editora Bookess- 2011.

A obra também está disponível na Livraria Cultura,e também online através do E-mail: livrotododia@gmail.com

CRÔNICA:"DEUS"

                                           Autor:Lula Falcão


Deus é assim, não tem religião nem se considera eterno. Está tão atormentado quanto seus adoradores. Vez por outra entra em crise. Como é desprovido de vaidade, fica enjoado com orações e outras mesuras. Quando clamam por sua ajuda, Ele só lamenta: “Tudo eu, tudo eu”.

Deus contesta livros e sermões. “É ficção pura”, diz. “Não fiz o mundo em sete dias, não tenho filhos nem autorizei ninguém a falar em meu nome”.

Também não se acha responsável por mortes e tragédias. “Essas coisas podem acontecer com qualquer um, inclusive comigo”. Ele não interfere, não dá palpite, deixa rolar.

Todos os anos, Deus premia um ateu de sua preferência com férias remuneradas no Paraíso. O sujeito volta à Terra, esquecido tudo, e continua a levar sua vida de descrente. Deus adora as pessoas que não acreditam nele. Dão menos trabalho.

CRÔNICA:"NO SUPER"

Labirintite (?!?)
                                                         Autor:Lula Falcão

-O senhor está sob o efeito de drogas?
- Estou. Tomei um remédio pra labirintite.
- Ah. Desculpe. É que seus olhos estão muito vermelhos e eu pensei...
- Quanto foi?
- R$ 17.80
- Crédito.
- Olha, não foi por mal, viu. Fiquei preocupada com o senhor. Estava zanzando sem destino, passou muito tempo na prateleira de material de limpeza. Ficou lendo as embalagens. O senhor leu umas dez embalagens e não pegou nada lá.
- O que?
- Nada. Estava só falando do seu jeito, desculpe, meio loucão.
- Minha senhora eu tomei um remédio pra labirintite. Pega a nota pra assinar, por favor. Não estou me sentindo muito bem.
- Parece que não. Quer que eu chame alguém?
- Não precisa. Eu moro aqui perto.
- Sabe, fiquei preocupada com o senhor e eu não costumo ficar preocupada assim com as pessoas.
- Obrigado pela preocupação.
- Olha, eu saio às 18h. Talvez a gente...
- Sim?
- Deixa pra lá.
-Por quê?
- Não sei.
- Tchau
- Ei. Minha mãe tem labirintite e o olho dela não fica vermelho assim, não.

CRÔNICA:"A Vida Chata depois da Morte"

                                        Autor:Lula Falcão

A vida depois da morte tem uma série de inconvenientes. O primeiro deles é o fato de muito provavelmente não existir. Então, a pessoa morre e pronto. Nada. Zero. Acabou. Não entendo porque os ateus não caem na maior esbórnia, não tomam todas e não promovem orgias diárias. Afinal, é agora ou nunca. Mas são até bem-comportados e não cobram dízimo.

Mas ai vem a questão mais complicada. Deus existe e depois do último suspiro a alma segue sua viagem para destinos que variam de acordo com as religiões. Os católicos, por exemplo, só dispõe de três: Céu, inferno e Purgatório, sendo que este último não é o terminal, mas um ponto de baldeação, uma escala. Deve ser o lugar mais caótico e congestionado do além, pois ali estão bilhões de mortos que não foram nem bons nem ruins em vida. Questões infindáveis devem passar pela cabeça dessa galera do além-túmulo: onde fica o balcão de informações? Que fila é essa? Onde compro uma cerveja? Pode fumar? Estou aqui há 70 anos e ninguém diz nada. Não por acaso a palavra purgatório está associada a sofrimento e castigo, mesmo durante a vida.

De acordo com os ritos latinos, no purgatório o espírito passa por julgamento particular em que o destino é especificado. Quem reclama da morosidade da Justiça brasileira nem imagina – ninguém imagina – o que é aquilo. Julga-se um a um ou há processos coletivos, como nos casos de formação de quadrilha ou bandas de Axé? Seja como for, uns vão para o Céu e outros para o Inferno. Mas o purgatório continua cheio, com novas almas chegando, completamente atordoadas, sem saber em que condução vão embarcar.

Sabe-se lá como, os processos são julgados e começa o check-in para o Inferno. A ordem é se livrar logo dos maus elementos. Pelo menos nessa ocasião, o nada é mais interessante. A descrição mais suave da nova morada é de um fogaréu descomunal, em que os mortos vão arder pela eternidade, mesmo aqueles que já foram cremados.

O contrário é o Céu. A maioria das religiões descreve o Céu como um lugar maravilhoso, um paraíso, embora cada crença tenha seu próprio portfólio a respeito. Segundo a Bíblia e a Wikipédia, o céu é onde se encontra o trono de Deus. Também moram lá Jesus, os anjos e as pessoas que vieram do purgatório. Alguns privilegiados podem ter chegado sem escala. É o caso dos santos. Ainda de acordo com a Bíblia (com informações do site www.gotquestions.org), o Céu é uma cidade cheia do brilho de pedras preciosas e jaspes claros como os cristais. “O céu tem 12 portas (Apocalipse 21:12) e 12 fundamentos (Apocalipse 21:14). O paraíso do Jardim do Éden é restaurado: o rio da água da vida corre livremente e a árvore da vida está disponível novamente, dando fruto mensalmente com folhas que são para “a cura dos povos” (Apocalipse 22:1-2).

Informações mais práticas, nenhuma. Como afirma Woody Allen, não se sabe nada a respeito do funcionamento do Céu, seus horários, como é a vida noturna, o sexo etc. O certo é que, para os católicos, o céu é como o sonho da casa própria. O lugar onde se vai morar para sempre. Para sempre mesmo. Quem não gostar dessa Alphaville da eternidade, dançou. De lá nunca mais sairá. O consolo é ser melhor do que o Inferno – é o que dizem.

Outra opção disponível na praça é voltar à Terra, encarnado em outra pessoa e, se não der sorte, numa lhama ou numa barata. Pode também vagar por ai, invisível, assustando as pessoas, mas essa hipótese tem mais amparo em Hollywood do que nas religiões ocidentais.

De qualquer maneira, morrer é sempre desagradável. Uma mudança muito brusca na sua rotina. Vai embora com a roupa do corpo, sem saber para onde e, pior, talvez para lugar nenhum.


Vale destacar que o texto acima é de um leigo, ou seja, de alguém que nunca morreu
.

CRÔNICA:"A Morte do Senador"

Foto do Senador mais jovem (?)
                                            Autor:Lula Falcão


O velho político estava na cama do hospital, agonizando, clamando por todos os santos, pedindo perdão pelos pecados, chorando diante da morte, agarrado à existência de forma meio obscena, pois perdeu um pouco daquele catolicismo que apregoava em plenário. Em todo caso, cedeu ao arrependimento. Lamentou as propinas - especialmente as de menor porte -, o tráfico de influência, o desvio de verbas públicas, as mentiras ao eleitorado. A família saiu, ele chamou o assessor, cuja tarefa era lustrar da imagem do parlamentar, mesmo nesse momento de moribundez. “Senador, morra com elegância”, disse o conselheiro. “Não terá mais jornais daqui uns dias, mas restam os livros de história”. O doente terminal revirou-se no leito, pensou em acolher a idéia, mas recordou que suas relações com o mundo acadêmico sempre foram inamistosas. Fez a última proposta: “cuide da minha memória só no meu Estado, no meu Estado, entendeu?”.

O parlamentar tinha deixado um livro de memórias. Valia pouco para historiadores se contemplado com documentos oficiais. Edição esmerada, capa dura, foto de estadista. Só não se podia determinar se ele viveu aqueles fatos, se foram contados por terceiros ou se eram pura lenda. Pior: a parte mais saborosa de sua biografia estava em mãos do Ministério Público. Sobre isso, nenhuma referência.

Sabe-se que o senador deixou este mundo a pulso. Talvez gostasse mais do mandato do que da vida ou considerasse os dois indissociáveis. Áulicos, discursos cheios de citações, jogadas políticas manhosas, carros oficiais, solenidades, prostitutas de luxo, viagens internacionais, dinheiro, poder e ternos bem cortados. Tudo isso acabou. No monitor de batimentos cardíacos, uma linha reta e aquele tradicional apitinho contínuo.

O passamento, porém, saiu a contento. O País fez piadinhas de mau gosto sobre a morte do senador (algumas de bom gosto, também), mas seu Estado chorou. Enterro de primeira, promessas de mais avenidas com o nome do filho ilustre, discursos inspirados em poetas da província e um cargo no Arquivo Público para o fiel assessor. Muitos disseram: “morreu como um passarinho”. Um correligionário, mais afeito às letras, lembrou a frase atribuída ao filósofo Caio Souza Leão: “A vida é uma questão local”.

CRÔNICA:"Casal Teoria e Prática"

- Quer saber, Alberico? Vai te...
                                            Autor:Lula Falcão

- Você não acha que Câmara está colocando em risco a democracia representativa no País?

- Não acho nada, Alberico.

- Por que é sempre assim, mulher, você nunca acha nada.

- Já achei. Não acho mais. Achar adianta alguma coisa?

- Claro que sim. Já ouviu a frase “quem não gosta de política será governado por quem gosta”?

- Não, mas qual é o problema? Quem gosta que governe. E tem mais: você adora política e não governa porra nenhuma.

- Meu bem, não é por ai. O fundamental é que a alienação política termina te deixando alienada de tudo...

- Como assim? Já fiz um bocado de coisas hoje. Levei as crianças na escola, paguei as contas e ainda trabalhei das nove até agora. Lembra? Sou eu quem sustenta essa casa.

- Claro, nunca neguei isso. Estou sem emprego fixo, mas não parado. Reflito sobre o Brasil, sobre as questões institucionais. Escrevo meu blog, tenho 1200 seguidores no twitter. Estou clamando por um país melhor.

- Alberico, esse twitter e esse blog não dão um tostão furado. Tanto concurso público por ai e você não se mexe...

_ Você acha que quero viver à custa do Estado, virar funcionário público, ser cúmplice de um sistema permeado pela corrupção?

- Que cúmplice coisa nenhuma, Alberico. É só um emprego como outro qualquer. E tem um salário no final do mês. Ficar ai escrevendo nesse blog é que não vai resolver porra nenhuma.

- Um blog que você não lê.

- Alberico, eu lá tenho tempo pra ler blog?

- Tem que arranjar um tempo. Não falo especificamente do “meu blog”. Você precisa se informar.

- Se você gosta tanto de política por que não vai ser cabo eleitoral?

- Heleninha, pelamordedeus, eu penso a política como algo superior, acima de questiúnculas partidárias, de campanhas eleitorais, essas coisas. Meu negócio é o Bobbio, a Ciência Política, a teoria, as questões do Estado, as relações com a sociedade.

- Que Mané Bobbio, rapaz. Você vive citando esse cara e até agora, necas. Em vez de ficar na dos outros por que você não arruma emprego de cientista político?

- Você sabe muito bem que não é assim. Não tenho diploma universitário. E não por falta de capacidade. É que sou bastante crítico em relação à vida acadêmica, aos seus vícios, às suas “verdades”...

- Alberico, você é crítico de tudo que pode te tirar desse maldito computador. Se soubesse não tinha comprado essa merda.

- Olha, Heleninha, você deveria agradecer por ter em casa uma pessoa que reflete e escreve sobre política. Lembre do meu livro. Não sou qualquer um, tenho um livro publicado.

- Um livro que ninguém leu. Até hoje você deve à gráfica. Melhor dizendo, eu devo.

- Heleninha, sabe o que me irrita? Essa sua falta de classe pra viver uma relação em que um é o provedor material e o outro se dedica a pensar, questionar e formular teorias. Conheço vários casais que tratam isso de uma forma, digamos, mais elegante.

- Olhe, Alberico, enchi o saco dessa sua vagabundagem enfeitada com teoria política. Não fosse casado comigo, você estaria morando na rua, sem blog e sem teto, ou arrumava outra besta quadrada como eu para segurar sua onda de intelectual fracassado. O que você produziu até hoje? Sim, tem o livro. Mas ninguém ligou, Alberico. Aquilo é um emaranhado de soluções à procura de problemas; você não alinha fatos concretos e faz uma análise simplista da realidade brasileira a partir de leituras rasteiras de jornais e revistas. Não há uma única idéia inovadora, nenhum pensamento original naquele labirinto de citações fora do lugar. Sem contar os erros históricos. Sua análise da Era Vargas, por exemplo, não leva em conta a conjuntura internacional e a própria guerra é deixada de lado para embarcar num cozido mal feito de Gilberto Freyre e Caio Prado. Encontrei vários parágrafos completamente descontextualizados, talvez por falta de conhecimentos sobre a engrenagem econômica do pós-guerra. E tem mais: o que O Gramsci está fazendo ali, ciscando sobre todos os temas, das artes plásticas ao sindicalismo...

- Sabe de uma coisa, Heleninha? Você me deu uma idéia: vou preparar uma segunda edição do livro. Levarei em conta suas observações. Algumas são equivocadas, mas você tem razão sobre Vargas. Preciso mergulhar nesse tema nos próximos meses. Enquanto isso, você bem que poderia escrever no meu blog a cada quinze dias...

- Quer saber, Alberico? Vai te fuder!

terça-feira, 24 de maio de 2011

BIOGRAFIA: ERICO VERÍSSIMO

Erico Lopes Veríssimo nasceu em Cruz Alta (RS) no dia 17 de dezembro de 1905,e faleceu em 28 de novembro de 1975.
Em 1930, o autor muda-se para Porto Alegre disposto a viver de seus escritos. Passa a conviver com escritores já renomados, como Mario Quintana, Augusto Meyer, Guilhermino César e outros. No final do ano é contratado para ocupar o cargo de secretário de redação da “Revista do Globo”.
Em 1931 lança sua primeira tradução, “O sineiro”, de Edgar Wallace.No mesmo ano traduz desse escritor “O círculo vermelho” e “A porta das sete chaves”. Colabora na página dominical dos jornais “Diário de Notícias” e “Correio do Povo”.

Em 1932, é promovido a Diretor da “Revista do Globo”.Sua obra de estréia, “Fantoches”, uma coletânea de histórias em sua maior parte na forma de peças de teatro.
Traduz, em 1933, “Contraponto”, de Aldous Huxley, que só seria editado em 1935. Seu primeiro romance, “Clarissa”, é lançado com tiragem de 7.000 exemplares.

Publica seu romance “Música ao longe”  em 1934. Outro romance, “Caminhos cruzados”,  são publicados, ainda nesse ano,juntamente com “Música ao longe” e “A vida de Joana d’Arc”. Realiza sua primeira viagem ao Rio de Janeiro (RJ), onde faz contato com Jorge Amado, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego e outros mais.
Em 1936, publica seu primeiro livro infantil, “As aventuras do avião vermelho”. Lança, também, “Um lugar ao sol”.Um de seus maiores sucessos, “Olhai os lírios do campo”, é lançado em 1938. Publica, nesse mesmo ano, “O urso com música na barriga”.
Em 1940, lança “Saga”.Traduz “Ratos e homens”, de John Steinbeck; “Adeus Mr. Chips” e “Não estamos sós”, de James Hilton; “Felicidade” e “O meu primeiro baile”, de Katherine Mansfield. Faz sua primeira noite de autógrafos na Livraria Saraiva.

Passa três meses nos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado americano, em 1941, proferindo conferências. As impressões dessa temporada estão em seu livro “Gato preto em campo de neve”. Publica “As mãos de meu filho”, reunião de contos e outros textos, em 1942.

No ano seguinte, publica “O resto é silêncio”. Aceita o convite para lecionar Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia feito pelo Departamento de Estado americano. Muda-se para Berkley com toda a família.

O Mills College, de Oakland, Califórnia, onde dava aulas de Literatura e História do Brasil, confere-lhe o título de doutor Honoris Causa, em 1944. É publicado o compêndio “Brazilian Literature: An Outline”, baseado em palestras e cursos ministrados durante sua estada na Califórnia. Esse livro foi publicado no Brasil, em 1955, com o título “Breve história da literatura brasileira”.Em 1945, retorna ao Brasil.Em 1946, publica “A volta do gato preto”, sobre sua vida nos Estados Unidos.

Inicia,em 1947,a escrever “O tempo e o vento”. Previsto para ter um só volume, com aproximadamente 800 páginas, e ser escrito em três anos, acabou ultrapassando as 2.200 páginas, sob a forma de trilogia, consumindo quinze anos de trabalho. 
”O continente”, primeiro volume de “O tempo e o vento”, é finalmente publicado, em 1949, recebendo muitos elogios da crítica.
No ano de 1951, é lançado o segundo livro da trilogia “O tempo e o vento”: “O retrato”. O trabalho não tão bem recebido pela crítica como o primeiro livro.

Assume,em 1953, a convite do governo brasileiro, em Washington, E.U.A., a direção do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, na Secretaria da Organização dos Estados Americanos.

No ano seguinte, é agraciado com o prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Lança “Noite”, novela que é traduzida na Noruega, França, Estados Unidos e Inglaterra. Visita, face às funções assumidas junto à OEA, diversos países da América Latina, proferindo palestras e conferências.

De volta ao Brasil, em 1956, lança “Gente e bichos”, coleção de livros para crianças.Em 1957, publica “México”, onde conta as impressões da viagem que fizera àquele país.

”O arquipélago”, terceiro livro da trilogia “O tempo e o vento”, começa a ser escrito em 1958. Tem um mal-estar ao discursar na abertura de um congresso em Porto Alegre. Consegue se refazer e disfarçar o ocorrido.

Acompanhado de sua mulher e do filho Luis Fernando Veríssimo, faz sua primeira viagem à Europa, em 1959. Expõe sua defesa à democracia em palestras proferidas em Portugal e entra em choque com a ditadura salazarista. Lança “O ataque”, que reunia três contos: “Sonata”, “Esquilos de outono” e “A ponte”, além de um capítulo inédito de “O arquipélago”. Dedica-se,em 1960, a escrever “O arquipélago”.

Em 1961, sofre o primeiro infarto do miocárdio. Após dois meses de repouso absoluto, volta aos Estados Unidos com sua mulher. Saem os primeiros tomos de “O arquipélago”.

O terceiro tomo de “O Arquipélago” é publicado em 1962, concluindo o projeto de “O tempo e o vento”. O volume é considerado uma obra-prima. Visita a França, Itália e a Grécia.

Em 1962, muda-se para o Rio de Janeiro. Insurge-se contra o golpe militar e dirige manifesto a seus leitores em defesa das instituições democráticas.Recebe o título de “Cidadão de Porto Alegre”, conferido pela Câmara de Vereadores daquela cidade.

Ganha o Prêmio Jabuti – Categoria “Romance”, da Câmara Brasileira de Livros, em 1965, com o livro “O senhor embaixador”. Volta aos Estados Unidos.

A convite do governo de Israel, visita aquele país em 1966. Vai aos Estados Unidos, mais uma vez.  Escreve “O prisioneiro”, que seria lançado em 1967. A Editora José Aguilar, do Rio de Janeiro, publica, em cinco volumes, o conjunto de sua ficção completa. Desse conjunto faz parte uma pequena autobiografia do autor, sob o título “O escritor diante do espelho”.

”O tempo e o vento”, sob a direção de Dionísio Azevedo, com adaptação de Teixeira Filho, estréia na TV Excelsior, em 1967. No elenco, Carlos Zara, Geórgia Gomide e Walter Avancini.

É agraciado com o prêmio “Intelectual do ano” (Troféu Juca Pato”), em 1968, em concurso promovido pela “Folha de São Paulo” e pela “União Brasileira de Escritores”.

No ano seguinte, a casa onde Erico nascera, em Cruz Alta, é transformada em Museu Casa de Erico Verissimo. Lança “Israel em abril”.Em 1971, é editado o livro “Incidente em Antares”.

Em 1972, comemorando os 40 anos de lançamento de seu primeiro livro, relança “Fantoches”, onde o autor acrescentou notas e desenhos de sua autoria.

Amplia sua autobiografia, publicada em 1966, fazendo surgir suas memórias — sob o título de “Solo de clarineta” — cujo primeiro volume é publicado em 1973.

O escritor falece subitamente no dia 28 de novembro de 1975, deixando inacabada a segunda parte do segundo volume de suas memórias, além de esboços de um romance que se chamaria “A hora do sétimo anjo”.

Carlos Drummond de Andrade faz homenagem ao amigo fazendo publicar o seguinte poema:

A falta de Erico Veríssimo


Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta.

CRÔNICA:"Os devaneios do general"

General Chicuta Campolargo
Autor:Erico Verissimo



Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.


O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.


O sol! As poças d'água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.


O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras... E recordações... Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.


O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.


O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.


Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.


Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia...


Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu... Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político... A oposição comia fogo com ele.


O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na "Voz de Jacarecanga" um artigo desaforado... Não trazia assinatura. Dizia assim: "A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada". Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou "Patife! Canalha!" Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.


— Sente-se, canalha!


O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.


— Abra a boca! — ordenou.


Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.


— Come! — gritou.


Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.


— Coma! — sibilou o general.


Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.


— Coma, pústula!


E o homem comeu.


Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.


— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.


Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.


No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses "banheiros" que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.


O general remergulha no devaneio.


93... Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento... Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!


Morte... O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite... Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo... se houver outro mundo.


Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas... Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os "maragatos". Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: "Inimigo não se poupa. Ferro neles!"


Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes...) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar... Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: "Inimigo não se poupa".


O general agora recorda... Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.


Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:


— Petronilho!


A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.


— Petronilho! Negro safado! Petronilho!


Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?


— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?


— Está lá fora, vovô.


— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.


— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?


— Quero um copo d'água. Estou com sede.


— Por que não toma suco de laranja?


— Água, eu disse.


A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada... Chiquinho... Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923...


Um dia ele perguntou ao menino:


— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?


— Não. Eu quero ser doutor como o papai.


— Canalhinha! Patifinho!


Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.


— Eu disse água! — sibila o general.


O mulato sacode os ombros.


— Mas eu digo suco de laranja.


— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!


Petronilho responde sereno:


— Não vou, general de bobagem...


O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.


— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!


— Suco de laranja — cantarola o mulato.


— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!


Petronilho sorri:


— Suco de laranja, seu sargento!


Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.


O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.


Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão... Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia...


Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na "hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados". Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo... Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias... O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: "Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar".


E recitando coisas esquisitas. "V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido". Outras vezes olhava para o busto e berrava: "Inimigo não se poupa. Ferro neles".


Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.


O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu... Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.


Fecha os olhos e recorda a glória antiga.


Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações...


Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último "homem" da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem... Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!


E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.


De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:


— Vovô! Vovô!


Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.


— A lagartixa, vovozinho...


O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:


— Degolei a lagartixa, vovô!


No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:


— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!


E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

domingo, 8 de maio de 2011

CRÔNICA:"ENFIM...SÓ!"

                                                                           
                                                                                           


Autor:Fernando Ortiz


Segundo domingo de Maio,”Dia das Mães”!Mais uma data inventada pelo comércio para aumentar as vendas... E como faturam, as lojas ficam pululando de gente, todos à procura de uma lembrancinha para suas respectivas mães! É bonito de se ver... Mas, triste ao mesmo tempo... Não tenho mais mãe... Não tenho com quem festejar este dia!Afinal, nos somos tomados por uma enxurrada de comerciais de TV, que acabamos sendo contaminados!
Eis a questão, com quem comemorar? Minha companheira saiu para comemorar esta data com sua mãe, ambas foram almoçar juntas neste domingo, não fui convidado, também pudera trata-se de almoçar com a sogra... E sogra não é mãe!Vou ter que me virar na cozinha, talvez o velho e bom sanduíche, que nunca me abandona, sempre esta lá na geladeira esperando a oportunidade para saciar minha fome, será minha opção!
Fico imaginando que ele é um suculento inhoque... Pronto, estamos resolvidos!
Mas, minha data irá chegar ”Dia dos Pais”, sou pai de dois meninos!
Neste dia (mais uma data comercial) serei cultuado, reverenciado... Todos estarão me convidando para almoçar, ganharei presentes, será inesquecível!
Há um empecilho... Meus filhos são de mães diferentes, mas posso contornar a situação, almoçarei somente com os dois, sem a presença das referidas mães!
Decidido, basta comunicar a ambos!
Não deu certo! Acabo de ser avisado que meus filhos irão “festejar” o “Dia dos Pais”, com seus respectivos padrastos... Alegaram que neste dia não poderão abandonar, quem de fato os criaram!
Senti-me o último dos homens! Fui reduzido à mera contribuição biológica!
Terei que abastecer a geladeira... Mais uma data comemorativa que comerei sanduíche e sozinho!

sábado, 7 de maio de 2011

DOIS DEDOS DE PROSA: O MURO...

"Com certeza,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que me joguei
A vida inteira.
Não,nunca o contornei.
Nunca tentei ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais fundo sentia
A dor de me perder."
Miguel Torga ( Pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, 19071995.Foi importante escritor português. Destacou-se como poeta e contista , mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios).
 

MICROCONTO:"OCUPADO".

Ambiente lúgubre,uma densa fumaça de cigarro pairava no ar.Algo me dizia que tinha que sair urgente dali.Caminhei a passos largos a procura da saída.Enfim,deparei com uma porta,confirmei os dizeres.Era ali.Resolvi bater,ouvi um longo gemido,em seguida alguém respondeu:Tem Gente!
(Fernando Ortiz,é médico e cronista).

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

DOIS DEDOS DE PROSA:DESMEMBRANDO O PACIENTE...

“O médico usa métodos científicos. Por um momento desmembra o paciente, isola seus rins ou seu coração e observa sua ação sob condições muito especializadas, mas, ao final, junta essas partes novamente para fazer seu diagnóstico…formulando um conceito das relações entre o paciente como pessoa, a doença como parte do paciente e o paciente como parte do mundo onde vive”.

(Thomas Addis -27 de julho de 1881 - 04 de junho de 1949- foi um médico e cientista , que fez importantes contribuições para a compreensão da formação de coágulos sanguíneos.Foi  pioneiro no campo da nefrologia , ramo da medicina que trata de doenças do rim . Addis foi o primeiro a demonstrar que o plasma poderia corrigir a hemofilia.)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

DOIS DEDOS DE PROSA:...SER MEDÍOCRE!


"A cada boa impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre."
 
 
(Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde -Nasceu Dublin, 16 de outubro de 1854 — Faleceu Paris, 30 de novembro de 1900- foi um escritor irlandês.)

DOIS DEDOS DE PROSA: CORRER RISCOS...


"Rir é arriscar parecer tolo;
Chorar é arriscar parecer sentimental;
Tentar alcaçar alguém é arriscar envolvimento;
Expor sentimentos é arriscar rejeição;
Expor seus sonhos perante a multidão é parecer ridículo;
Amar é arriscar não ser amado de volta;
Seguir adiante face a probalidade irresistível é arricar ao fracasso;
Apenas uma pessoa que corre riscos é livre e feliz".
(Alexander Lowen, psicanalista de orientação freudiana foi um dos estudantes de Wilhelm Reich.Morreu em 28 de outubro de 2008, aos 97 anos.)