terça-feira, 24 de maio de 2011

BIOGRAFIA: ERICO VERÍSSIMO

Erico Lopes Veríssimo nasceu em Cruz Alta (RS) no dia 17 de dezembro de 1905,e faleceu em 28 de novembro de 1975.
Em 1930, o autor muda-se para Porto Alegre disposto a viver de seus escritos. Passa a conviver com escritores já renomados, como Mario Quintana, Augusto Meyer, Guilhermino César e outros. No final do ano é contratado para ocupar o cargo de secretário de redação da “Revista do Globo”.
Em 1931 lança sua primeira tradução, “O sineiro”, de Edgar Wallace.No mesmo ano traduz desse escritor “O círculo vermelho” e “A porta das sete chaves”. Colabora na página dominical dos jornais “Diário de Notícias” e “Correio do Povo”.

Em 1932, é promovido a Diretor da “Revista do Globo”.Sua obra de estréia, “Fantoches”, uma coletânea de histórias em sua maior parte na forma de peças de teatro.
Traduz, em 1933, “Contraponto”, de Aldous Huxley, que só seria editado em 1935. Seu primeiro romance, “Clarissa”, é lançado com tiragem de 7.000 exemplares.

Publica seu romance “Música ao longe”  em 1934. Outro romance, “Caminhos cruzados”,  são publicados, ainda nesse ano,juntamente com “Música ao longe” e “A vida de Joana d’Arc”. Realiza sua primeira viagem ao Rio de Janeiro (RJ), onde faz contato com Jorge Amado, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego e outros mais.
Em 1936, publica seu primeiro livro infantil, “As aventuras do avião vermelho”. Lança, também, “Um lugar ao sol”.Um de seus maiores sucessos, “Olhai os lírios do campo”, é lançado em 1938. Publica, nesse mesmo ano, “O urso com música na barriga”.
Em 1940, lança “Saga”.Traduz “Ratos e homens”, de John Steinbeck; “Adeus Mr. Chips” e “Não estamos sós”, de James Hilton; “Felicidade” e “O meu primeiro baile”, de Katherine Mansfield. Faz sua primeira noite de autógrafos na Livraria Saraiva.

Passa três meses nos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado americano, em 1941, proferindo conferências. As impressões dessa temporada estão em seu livro “Gato preto em campo de neve”. Publica “As mãos de meu filho”, reunião de contos e outros textos, em 1942.

No ano seguinte, publica “O resto é silêncio”. Aceita o convite para lecionar Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia feito pelo Departamento de Estado americano. Muda-se para Berkley com toda a família.

O Mills College, de Oakland, Califórnia, onde dava aulas de Literatura e História do Brasil, confere-lhe o título de doutor Honoris Causa, em 1944. É publicado o compêndio “Brazilian Literature: An Outline”, baseado em palestras e cursos ministrados durante sua estada na Califórnia. Esse livro foi publicado no Brasil, em 1955, com o título “Breve história da literatura brasileira”.Em 1945, retorna ao Brasil.Em 1946, publica “A volta do gato preto”, sobre sua vida nos Estados Unidos.

Inicia,em 1947,a escrever “O tempo e o vento”. Previsto para ter um só volume, com aproximadamente 800 páginas, e ser escrito em três anos, acabou ultrapassando as 2.200 páginas, sob a forma de trilogia, consumindo quinze anos de trabalho. 
”O continente”, primeiro volume de “O tempo e o vento”, é finalmente publicado, em 1949, recebendo muitos elogios da crítica.
No ano de 1951, é lançado o segundo livro da trilogia “O tempo e o vento”: “O retrato”. O trabalho não tão bem recebido pela crítica como o primeiro livro.

Assume,em 1953, a convite do governo brasileiro, em Washington, E.U.A., a direção do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, na Secretaria da Organização dos Estados Americanos.

No ano seguinte, é agraciado com o prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Lança “Noite”, novela que é traduzida na Noruega, França, Estados Unidos e Inglaterra. Visita, face às funções assumidas junto à OEA, diversos países da América Latina, proferindo palestras e conferências.

De volta ao Brasil, em 1956, lança “Gente e bichos”, coleção de livros para crianças.Em 1957, publica “México”, onde conta as impressões da viagem que fizera àquele país.

”O arquipélago”, terceiro livro da trilogia “O tempo e o vento”, começa a ser escrito em 1958. Tem um mal-estar ao discursar na abertura de um congresso em Porto Alegre. Consegue se refazer e disfarçar o ocorrido.

Acompanhado de sua mulher e do filho Luis Fernando Veríssimo, faz sua primeira viagem à Europa, em 1959. Expõe sua defesa à democracia em palestras proferidas em Portugal e entra em choque com a ditadura salazarista. Lança “O ataque”, que reunia três contos: “Sonata”, “Esquilos de outono” e “A ponte”, além de um capítulo inédito de “O arquipélago”. Dedica-se,em 1960, a escrever “O arquipélago”.

Em 1961, sofre o primeiro infarto do miocárdio. Após dois meses de repouso absoluto, volta aos Estados Unidos com sua mulher. Saem os primeiros tomos de “O arquipélago”.

O terceiro tomo de “O Arquipélago” é publicado em 1962, concluindo o projeto de “O tempo e o vento”. O volume é considerado uma obra-prima. Visita a França, Itália e a Grécia.

Em 1962, muda-se para o Rio de Janeiro. Insurge-se contra o golpe militar e dirige manifesto a seus leitores em defesa das instituições democráticas.Recebe o título de “Cidadão de Porto Alegre”, conferido pela Câmara de Vereadores daquela cidade.

Ganha o Prêmio Jabuti – Categoria “Romance”, da Câmara Brasileira de Livros, em 1965, com o livro “O senhor embaixador”. Volta aos Estados Unidos.

A convite do governo de Israel, visita aquele país em 1966. Vai aos Estados Unidos, mais uma vez.  Escreve “O prisioneiro”, que seria lançado em 1967. A Editora José Aguilar, do Rio de Janeiro, publica, em cinco volumes, o conjunto de sua ficção completa. Desse conjunto faz parte uma pequena autobiografia do autor, sob o título “O escritor diante do espelho”.

”O tempo e o vento”, sob a direção de Dionísio Azevedo, com adaptação de Teixeira Filho, estréia na TV Excelsior, em 1967. No elenco, Carlos Zara, Geórgia Gomide e Walter Avancini.

É agraciado com o prêmio “Intelectual do ano” (Troféu Juca Pato”), em 1968, em concurso promovido pela “Folha de São Paulo” e pela “União Brasileira de Escritores”.

No ano seguinte, a casa onde Erico nascera, em Cruz Alta, é transformada em Museu Casa de Erico Verissimo. Lança “Israel em abril”.Em 1971, é editado o livro “Incidente em Antares”.

Em 1972, comemorando os 40 anos de lançamento de seu primeiro livro, relança “Fantoches”, onde o autor acrescentou notas e desenhos de sua autoria.

Amplia sua autobiografia, publicada em 1966, fazendo surgir suas memórias — sob o título de “Solo de clarineta” — cujo primeiro volume é publicado em 1973.

O escritor falece subitamente no dia 28 de novembro de 1975, deixando inacabada a segunda parte do segundo volume de suas memórias, além de esboços de um romance que se chamaria “A hora do sétimo anjo”.

Carlos Drummond de Andrade faz homenagem ao amigo fazendo publicar o seguinte poema:

A falta de Erico Veríssimo


Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta.

CRÔNICA:"Os devaneios do general"

General Chicuta Campolargo
Autor:Erico Verissimo



Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.


O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.


O sol! As poças d'água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.


O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras... E recordações... Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.


O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.


O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.


Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.


Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia...


Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu... Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político... A oposição comia fogo com ele.


O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na "Voz de Jacarecanga" um artigo desaforado... Não trazia assinatura. Dizia assim: "A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada". Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou "Patife! Canalha!" Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.


— Sente-se, canalha!


O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.


— Abra a boca! — ordenou.


Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.


— Come! — gritou.


Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.


— Coma! — sibilou o general.


Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.


— Coma, pústula!


E o homem comeu.


Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.


— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.


Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.


No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses "banheiros" que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.


O general remergulha no devaneio.


93... Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento... Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!


Morte... O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite... Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo... se houver outro mundo.


Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas... Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os "maragatos". Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: "Inimigo não se poupa. Ferro neles!"


Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes...) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar... Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: "Inimigo não se poupa".


O general agora recorda... Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.


Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:


— Petronilho!


A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.


— Petronilho! Negro safado! Petronilho!


Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?


— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?


— Está lá fora, vovô.


— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.


— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?


— Quero um copo d'água. Estou com sede.


— Por que não toma suco de laranja?


— Água, eu disse.


A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada... Chiquinho... Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923...


Um dia ele perguntou ao menino:


— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?


— Não. Eu quero ser doutor como o papai.


— Canalhinha! Patifinho!


Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.


— Eu disse água! — sibila o general.


O mulato sacode os ombros.


— Mas eu digo suco de laranja.


— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!


Petronilho responde sereno:


— Não vou, general de bobagem...


O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.


— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!


— Suco de laranja — cantarola o mulato.


— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!


Petronilho sorri:


— Suco de laranja, seu sargento!


Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.


O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.


Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão... Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia...


Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na "hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados". Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo... Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias... O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: "Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar".


E recitando coisas esquisitas. "V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido". Outras vezes olhava para o busto e berrava: "Inimigo não se poupa. Ferro neles".


Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.


O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu... Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.


Fecha os olhos e recorda a glória antiga.


Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações...


Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último "homem" da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem... Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!


E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.


De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:


— Vovô! Vovô!


Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.


— A lagartixa, vovozinho...


O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:


— Degolei a lagartixa, vovô!


No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:


— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!


E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

domingo, 8 de maio de 2011

CRÔNICA:"ENFIM...SÓ!"

                                                                           
                                                                                           


Autor:Fernando Ortiz


Segundo domingo de Maio,”Dia das Mães”!Mais uma data inventada pelo comércio para aumentar as vendas... E como faturam, as lojas ficam pululando de gente, todos à procura de uma lembrancinha para suas respectivas mães! É bonito de se ver... Mas, triste ao mesmo tempo... Não tenho mais mãe... Não tenho com quem festejar este dia!Afinal, nos somos tomados por uma enxurrada de comerciais de TV, que acabamos sendo contaminados!
Eis a questão, com quem comemorar? Minha companheira saiu para comemorar esta data com sua mãe, ambas foram almoçar juntas neste domingo, não fui convidado, também pudera trata-se de almoçar com a sogra... E sogra não é mãe!Vou ter que me virar na cozinha, talvez o velho e bom sanduíche, que nunca me abandona, sempre esta lá na geladeira esperando a oportunidade para saciar minha fome, será minha opção!
Fico imaginando que ele é um suculento inhoque... Pronto, estamos resolvidos!
Mas, minha data irá chegar ”Dia dos Pais”, sou pai de dois meninos!
Neste dia (mais uma data comercial) serei cultuado, reverenciado... Todos estarão me convidando para almoçar, ganharei presentes, será inesquecível!
Há um empecilho... Meus filhos são de mães diferentes, mas posso contornar a situação, almoçarei somente com os dois, sem a presença das referidas mães!
Decidido, basta comunicar a ambos!
Não deu certo! Acabo de ser avisado que meus filhos irão “festejar” o “Dia dos Pais”, com seus respectivos padrastos... Alegaram que neste dia não poderão abandonar, quem de fato os criaram!
Senti-me o último dos homens! Fui reduzido à mera contribuição biológica!
Terei que abastecer a geladeira... Mais uma data comemorativa que comerei sanduíche e sozinho!

sábado, 7 de maio de 2011

DOIS DEDOS DE PROSA: O MURO...

"Com certeza,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que me joguei
A vida inteira.
Não,nunca o contornei.
Nunca tentei ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais fundo sentia
A dor de me perder."
Miguel Torga ( Pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, 19071995.Foi importante escritor português. Destacou-se como poeta e contista , mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios).
 

MICROCONTO:"OCUPADO".

Ambiente lúgubre,uma densa fumaça de cigarro pairava no ar.Algo me dizia que tinha que sair urgente dali.Caminhei a passos largos a procura da saída.Enfim,deparei com uma porta,confirmei os dizeres.Era ali.Resolvi bater,ouvi um longo gemido,em seguida alguém respondeu:Tem Gente!
(Fernando Ortiz,é médico e cronista).