quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

BIOGRAFIA : RUY CASTRO

Ruy Castro (Caratinga - MG, 26 de fevereiro de 1948) é jornalista, com passagem por importantes veículos da imprensa do Rio e de São Paulo a partir de 1967, e escritor, a partir de 1988. É reconhecido pela produção de biografias como "O Anjo Pornográfico" (a vida de Nelson Rodrigues), "Estrela Solitária" (sobre Garrincha) e "Carmen" (sobre Carmen Miranda), e de livros de reconstituição histórica, como "Chega de Saudade" (sobre a bossa nova) e "Ela é Carioca" (sobre o bairro de Ipanema, no Rio).
Parte de sua produção jornalística foi reunida em livros como "Um Filme é para Sempre" (sobre cinema), "Tempestade de Ritmos" (sobre música popular) e "O Leitor Apaixonado" (sobre literatura). Escreveu também um ensaio sobre o Rio, "Carnaval no Fogo -- Crônica de uma Cidade Excitante Demais". Seus livros têm edições nos Estados Unidos, Japão, Inglaterra, Alemanha, Portugal, Espanha, Itália, Polônia, Rússia e Turquia. Em ficção, é autor do romance "Era no Tempo do Rei", das novelas "Bilac Vê Estrelas" e "O Pai Que Era Mãe", e de condensações de clássicos como "Frankenstein", de Mary Shelley, e "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll.A seu respeito foi publicado o livro "Álbum de Retratos -- Ruy Castro", uma minifotobiografia, pela editora Folha Seca. Vencedor do Prêmio Esso de Literatura, do Prêmio Nestlé de Literatura e de quatro Jabutis.Nasceu na mesma cidade do cartunista Ziraldo e da jornalista Miriam Leitão.

 Obras publicadas

  • Chega de Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova - 1990;
  • O Anjo Pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues - 1992;
  • Saudades do Século XX - 1994;
  • Estrela Solitária: Um brasileiro chamado Garrincha - 1995;
  • Ela é Carioca - 1999;
  • Bilac Vê Estrelas - 2000;
  • O Pai que era Mãe - 2001;
  • A Onda que se Ergueu no Mar - 2001;
  • Carnaval no Fogo - 2003;
  • Flamengo: Vermelho e Negro - 2004;
  • Amestrando Orgasmos - 2004;
  • Carmen: Uma biografia - 2005;
  • Rio Bossa Nova [2006]
  • Tempestade de Ritmos - 2007;
  • Era no tempo do rei: Um romance da chegada da corte - 2007;

 Participações, adaptações e antologias

  • Mau-Humor: Uma antologia definitiva de citações venenosas;
  • Contos de Estimação;
  • Querido Poeta: Correspondência de Vinícius de Moraes.


CITAÇÕES COLETADAS POR RUY CASTRO -3

    Mau   Humor
   (O AMOR)
Ruy Castro

Algumas mulheres permanecem na memória de um homem, mesmo que ele as tenha visto por um único segundo, atravessando a rua. (Rudyard Kipling)

Nunca tenha filhos. Só netos. (Gore Vidal)

Algumas pessoas têm aquele rosto que, depois de visto, nunca mais é lembrado. (Oscar Wilde)

Cuidado com o homem que não devolve a bofetada: ele não a perdoou, nem permitiu que você se perdoasse. (George Bernard Shaw)

Sexo é bom. Mas o poder é melhor. (Jiang Qing)

A proteção mais infalível contra a tentação é a covardia. (Mark Twain)

A virgindade é curável, se detectada cedo. (Henny Youngman)

Algumas mulheres se acham tão lindas que, quando se olham no espelho, não se reconhecem. (Millôr Fernandes)

Quem tem mulher bonita, que vá enviuvar em Belo Horizonte. Mas nunca deixar uma viúva em Ipanema ou no Leblon. (Antonio Maria)

O zangão é a prova de que o golpe-do-baú sai caro. (Fernando Pessoa Ferreira)

O problema das crianças é que elas não são descartáveis. (Quentin Crisp)

A vida é dura. Os homens não gostarão de você se você não for bonita - e as mulheres não gostarão de você se você for. (Agatha Christie)

Não se ama duas vezes a mesma mulher. (Machado de Assis)

A melhor maneira de segurar os filhos em casa é fazer do lar um lugar agradável — e esvaziar os pneus do carro. (Dorothy Parker)

Sou judia. Não faço ginástica. Se Deus quisesse que fizéssemos flexões, espalharia diamantes pelo chão. (Joan Rivers)

Todo homem tem o direito de ser imbecil por conta própria. (Ivan Lessa)

Quando se tem vinte anos, a gente vive querendo saber quem transa com as garotas de vinte. Aos trinta, descobre. (Ziraldo)

Pode-se ver um monte de sujeitos inteligentes com mulheres burras, mas você dificilmente verá uma mulher inteligente com um sujeito burro. (Erica Jong)

Não confio em produto local. Sempre que viajo levo meu uísque e minha mulher. (Fernando Sabino)

Depois de quatro drinques, meu marido se torna um chato. E, depois do quinto, eu desmaio. (Joan Rivers)

As frases acima foram coletadas, traduzidas e editadas por
Ruy Castro. Constam do livro "O Amor de Mau Humor".

CITAÇÕES COLETADAS POR RUY CASTRO - 2

Mau humor(O que elas pensam... e dizem)
Ruy Castro

Todo marido tem a infidelidade que merece. (Zelda Popkin, escritora americana)

Descasque um amante e descobrirá um inimigo. (Dorothy Parker, poetisa e escritora americana)

A intimidade entre as mulheres é sempre ao contrário: começa com a troca de grandes revelações e termina com a troca de abobrinhas. (Elizabeth Bowen, escritora anlgo-irlandesa)

Doris Day ainda é o ideal masculino. Eles se babam pela "coitadinha". (Sonia Nolasco, jornalista e escritora brasileira)

Os esquimós têm 52 palavras para designar neve porque ela é muito importante para eles; deveria haver outras tantas para o amor. (Margaret Atwood, escritora canadense)

Sempre digo que uma mulher deve se casar por amor — e continuar se casando até encontrá-lo. (Zsa Zsa Gabor, atriz americana)

Qualquer garota nasce sabendo tudo sobre o amor. O que aumenta é apenas a sua capacidade de sofrer por causa dele. (Françoise Sagan, escritora francesa)

Não sou mulher pra de cinco às sete. Sou mulher full-time. (Danuza Leão, jornalista brasileira, explicando por que não namoraria um homem casado)
O amor tudo pode, exceto contra a pobreza e a dor de dentes. (Mae West, atriz americana)

Sex appeal é 50% o que você tem e 50% o que as pessoas pensam que você tem. (Sophia Loren, atriz italiana)

O homem vê a mulher como se estivesse num frigorífico: um pedaço de nádegas, olhos grandes, cabelos pretos, seios fartos. Ele enxerga a mulher aos pedaços. (Rose Marie Muraro, escritora feminista brasileira)

A mulher só conquista quando se faz de presa. (Simone de Beauvoir, escritora francesa)

A natureza lhe deu o rosto que você tem aos vinte anos. Cabe a você merecer o que terá aos cinqüenta. (Coco Chanel, costureira francesa)

Ah, minha boa educação de berço. Que cruz! (Carmen da Silva, jornalista e escritora brasileira)

A vida é dura. Os homens não gostarão de você se você não for bonita — e as mulheres não gostarão de você se você for. (Aghata Christie, escritora inglesa)

Nenhum homem verdadeiramente bem educado é bom para chamar táxis. (Katherine Whitehorn, jornalista e radialista inglesa)

Nunca me casei porque nunca precisei. Tenho três bichinhos em casa que, juntos, perfazem um marido: um cachorro que rosna de manhã, um papagaio que fala palavrões o dia todo e um gato que volta de madrugada para casa. (Maria Corelli, escritora popular inglesa)

Quando estiver a fim de se casar com um sujeito, convide a ex-mulher dele para almoçar. (Shelley Winters, atriz americana)

Sou a mulher mais corajosa que conheço. Na intimidade, podem me chamar de Nara Coração de Leão. (Nara Leão, cantora brasileira, em 1965, quando falava cobras e lagartos dos militares pelos jornais)
O amor não tem idade nem conta bancária. Se tivesse, eu me casava com o Olavo Setúbal ou com o Antonio Ermírio de Moraes e resolvia o meu problema. (Nana Caymmi, cantora brasileira)

Nunca tive amor pelos homens com quem vivi. Com eles só fiz negócios. (Dercy Gonçalves, atriz brasileira)

A vida de Rimbaud foi o Pato Donald comparada com a minha. (Angela Ro-rô, cantora brasileira)

Porque ele teria de se chamar Xulé. (Xuxa, apresentadora de tv, quando lhe perguntaram por que não teve um filho com Pelé)
Bicha brasileira só pensa em mãe e em Nova York. (Danuza Leão, jornalista brasileira)

Quando me dá vontade de fazer ginástica, deito e deixo passar. (Neuzinha Brizola, ???? brasileira)

Cueca de homem, agora, só na cadeira. No armário, nunca mais. (Sonia Azevedo, jornalista brasileira)

Todos os cafajestes que conheci na minha vida eram uns anjos de pessoas. (Leila Diniz, atriz brasileira)

Frases selecionadas, ditas por mulheres, que refletem seu pensamento sobre os mais diversos assuntos. Foram extraídas dos livros "O Amor de Mau Humor", "O Poder de Mau Humor" e "O Melhor do Mau Humor", seleções de
Ruy Castro.

CITAÇÕES COLETADAS POR RUY CASTRO-1


Mau humor
Ruy Castro

A minha única restrição aos cigarros é a de que eles já não vêm acesos. (Fran Lebowitz)

E se este mundo for o inferno de outro planeta? (Aldoux Huxley)

Um homem pode ser perfeitamente feliz com qualquer mulher — desde que não viva com ela. (Oscar Wild)

Se todos os seres humanos tivessem ouvido realmente apurado, nenhum idiota teria coragem de inventar o acordeom. (Millôr Fernandes).

Ópera em inglês faz tanto sentido quanto beisebol em italiano. (H.L.Mencken)

Avião: é mais pesado do que o ar, tem motor a explosão e foi inventado por um brasileiro. Não pode funcionar. (Vinicius de Moraes).

Certa vez, durante a Lei Seca, fui obrigado a passar dias a comida e água. (W.C.Fields)

João Gilberto: o único estrangeiro nos Estados Unidos que preferiu aprender inglês com o Tarzan. (Telmo Martinho)

A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda a África nos deu até hoje. (Paulo Francis)

(Ao passar mal no avião e a aeromoça perguntar-lhe se estava sentindo falta de ar):
Não, eu estou sentindo falta de terra (Milton Campos)
Não concorde comigo até eu acabar de falar, pô! (Darryll F. Zanuck)

Guarda-chuva de banco só abre quando faz sol. (Antônio Ermírio de Morais)

A Bolsa de Valores é algo assim como uma suruba em que você entra com a bunda. (O Planeta Diário)

(Contemplando o mar de peixes mortos na Lagoa Rodrigo de Freitas,no Rio):
O Brasil é o único país do mundo em que peixe morre afogado.(Tobias).

Não temos uma democracia. Temos uma surubocracia anarco-sindicalista. (Roberto Campos)

Minha receita para enriquecer? Acorde cedo, trabalhe muito, ache petróleo. (J.Paul Getty)

A morte é o clube mais aberto do mundo. (Otto Lara Resende)

Não há amor que resista quando o homem toma champanhe no sapato de uma mulher e engasga com uma palmilha do Dr. Scholl. (Phyllis Diller)

Amigo é aquele que sabe tudo a seu respeito e, mesmo assim, ainda gosta de você. (Kim Hubbad)

O brasileiro é sueco com a mulher dos outros e mineiro com a própria mulher. (Ronaldo Boscoli)

Se os seus pais não tiveram filhos, há uma boa chance de que você também não tenha. (Clarence Day)

Quando o sujeito é uma besta e não é capaz de fazer nada, faz filhos. (Nelson Rodrigues)

Aqui vão algumas das citações contidas nos livros "O melhor do mau humor", "O poder de mau humor" e "O amor de mau humor", coletadas por Ruy Castro.

DOIS DEDOS DE PROSA: NUM MUNDO POUCO ESPERANÇOSO...

 
"Num Mundo pouco esperançoso...eu ainda acredito na força mágica de duas palavrinhas:Muito Obrigado !!" 
(Fernando Ortiz-Médico e cronista).

DOIS DEDOS DE PROSA: O DESEMPREGO...

"O desemprego amargura,entristece e faz pensar em muletas, em pleno vigor físico e mental" 
(Fernando Ortiz-Médico e cronista )

BIOGRAFIA: IVAN ÂNGELO

Ivan Ângelo (Barbacena, 4 de fevereiro de 1936) é um jornalista, cronista e romancista brasileiro. Começou sua carreira de escritor aos 21 anos na revista de arte e cultura editada em Belo Horizonte, "Complemento". Publicou seu primeiro livro, "Homem sofrendo no quarto", em 1959, conquistando o prêmio "Cidade de Belo Horizonte". Em 1961, lançou "Duas faces", com sete dos contos premiados, alguns novos e dois do amigo Silviano Santiago. Mudou-se para São Paulo em 1965. A revolução iniciada em abril de 1964 inibe sua produção literária. Seu romance "A festa", iniciado em 1963, só foi concluído em 1975. Publicado no ano seguinte, conquistou o prêmio Jabuti. Outros livros do autor: "A casa de vidro", "A face horrível" (prêmio APCA-1986), "Amor?" (prêmio Jabuti - 1995), "O comprador de aventuras e outras crônicas", "História em ão e inha", "O ladrão de sonhos e outras histórias", "Pode me beijar se quiser" (prêmio APCA-1999), e "O vestido luminoso da princesa", entre outros. Mantém coluna semanal no Jornal da Tarde - São Paulo (SP). Seus livros já foram publicados na França, EUA, Alemanha e Áustria. Na área jornalística, trabalhou no Correio de Minas, Diário de Minas e O Tempo, como colunista; no Jornal da Tarde (SP) como editor, editor-executivo e secretário de redação, e colaborador das revistas Playboy e Veja.

CRÔNICA:"Bar"


Autor:Ivan Ângelo

A moça chegou com sapatinho baixo, saia curta, cabelos lisos castanhos arrumados em rabo-de-cavalo, sorriu dentes branquinhos muito pequenos, como de primeira dentição, e falou o senhor me deixa telefonar? de maneira inescapável.

O homem da caixa registradora estava olhando o movimento do bar, tomando conta de maneira meio preguiçosa, sem fixar muito os olhos no que o rapaz do balcão já havia servido aos dois fregueses silenciosos, demorando-os mais no bêbado que balançava-se à porta do botequim ameaçando entrar e afinal parando-os no recheio da blusinha preta sem mangas que estava à sua frente, o que o fez despertar completamente com um e a senhora o que é?

A moça constatou contrariada que havia desperdiçado a primeira carga de charme e mostrou novamente seus pequeninos dentes, agora fazendo a precisadinha urgente, dizendo eu posso telefonar? com ar de quem entrega ao outro todas as esperanças.

O homem falou pois não e levantou a mão meio gorda do teclado da caixa registradora, abaixou-a olhando para o bêbado que subia o degrau da porta, retirou de uma prateleira debaixo da registradora um telefone preto onde ainda estava gravado no meio do disco o selo da antiga Companhia Telefônica Brasileira e empurrou-o para a moça dizendo não demore por favor que já vamos fechar.

A moça tirou o fone do gancho e murmurou baixinho putz, sopesou ostensivamente o aparelho e disse bajuladora pesadinho hein?

O homem sorriu atingido pela seta da lisonja dizendo éééé antigo.

A moça levou o fone ao ouvido e discou 277281 com um dedo bem tratado de unha lilás.

O homem da caixa tirou os olhos do dedo, pegou um lápis enganchado na orelha direita e anotou a milhar explicando é pra o bicho, não se importando se a moça ouvia ou não e devolveu o lápis à orelha enquanto olhava o bêbado que navegava agora à beira do balcão.

A moça falou quer fazer o favor de chamar o Otacílio e ficou esperando.

Um homem chegou ao lado dela cheirando a cigarro, falou para o caixa me dá um miníster, olhou intensamente os olhos dela e imediatamente os seios.

A moça enrubesceu e se tocou rápida procurando o botão aberto que nem havia e protegeu-se expirando o ar com o diafragma e avançando os ombros para disfarçar o volume do peito.

A caixa registradora fez tlin, um carro freou rangendo pneus e uma voz forte gritou filha da puta com um u muito longo.

O homem da caixa deu o troco ao homem que comprara cigarros e falou faz de conta que não ouviu nada menina isso aqui é assim mesmo.

O homem que comprara cigarros afastou-se e foi ver da porta o que estava acontecendo na rua.

A moça voltou-se simpática para o homem da caixa mas parou atenta aos sons do fone, mudou de atenta a decepcionada e falou depois de instantes diz que é a Julinha.

O homem que comprara cigarros parou na porta, abriu o maço de cigarros e acendeu um.

O homem da caixa falou ô José esse aí tem de pagar primeiro e o rapaz do balcão parou de servir a cachaça para o bêbado e falou qualquer coisa com ele enquanto o homem da caixa procurava explicar-se dizendo depois não paga e ainda espanta freguês.

A moça sorriu condescendente.

O homem fumava à porta e olhava as pernas dela.

A moça pôs uma perna na frente da outra defendendo-se cinqüenta por cento e falou de repente alegre oi! demorou hein? E procurando um pouco de privacidade virou-se dizendo ficou com raiva de mim?

O homem da caixa fingia-se distraído mas ouvia o que ela dizia.

Pensei. Não me ligou.

O bêbado navegou contornando arrecifes e chegou ao caixa com uma nota de quinhentos na mão.

Mas não é isso, não é nada disso.

O homem da caixa disse pode servir José.

Não sei... fiquei com medo, só isso.

O bêbado começou o cruzeiro de volta.

Não, não. Não é de você. Acho que é assim mesmo, não é?

A caixa registradora fez tlin marcando quinhentos cruzeiros.

Poxa, Otacílio, pensa. O tanto de coisa que vem na cabeça da gente numa hora dessas. Vocês acham tudo fácil.

A cara do homem da caixa estava um pouco mais desperta e maliciosa.

Claro que é difícil. É só querer ver o lado da gente, pô.

O rapaz do balcão tirou o mesmo copo meio servido e a mesma garrafa e completou a dose do bêbado.

Tá legal. Eu também acho: vamos esquecer o que aconteceu ontem. Falou.

O bêbado olhou atentamente para o copo como se meditasse mas na verdade apenas esperando o momento certo de conjugar o movimento do navio com o de levar o copo à boca e quando o conseguiu bebeu tudo de uma vez com uma careta e um arrepio.

A moça ouviu com ar travesso o que Otacílio dizia e sorriu excitada seus dentes branquinhos.

O homem da caixa olhou para o homem da porta e a cumplicidade masculina brotou nos olhares.

Não, sábado não dá. Aí já passou. Ora, como. Passou do dia, Ota, não dá. Não dá pra explicar aqui. Você não entende? Tem dia que dá e tem dia que não dá, pô.

O homem da caixa piscou para o homem que fumava na porta como quem diz você que tava certo.

Uai, só daqui a uns quinze dias. Lógico que eu me informei.

A moça viu o olhar do homem da porta e virou-lhe as costas.

Hoje!? Tá louco?

O homem que fumava ficou olhando-a por trás.

Papai não vai deixar. Só se... Só se eu falar com a mamãe e ela falar com ele.

Alguém chegou e falou cobra duas cervejas e me dá um drops desse aqui ó hortelã.

Ora, que que eu vou falar. Não sei, pô. Eu dou um jeito. Pode deixar que eu me viro.

A caixa fez tlin e o homem foi embora sem que ela o visse.

Não, eu vou. De qualquer jeito eu vou. Agora eu que tou querendo.

A moça olhou para o homem da caixa e fugiu depressa daquela cara agora debochada.

Então me espera. Eu vou aí. Chau.

A moça desligou e ficou uns instantes com o olhar baixo tomando coragem e depois falou para o homem posso ligar só mais unzinho?

O homem da caixa falou pode alongando o muito liberal e olhando fixamente de cima a sugestão do decote.

A moça procurou um ponto neutro para olhar e achou o rapaz que lavava copos atrás do balcão, enquanto esperava o sinal do telefone, depois discou 474729 e ficou olhando o ambiente.

Uma armadilha azul fluorescente de eletrocutar moscas aguardava vítimas.

O rapaz do balcão olhava-a furtivamente e murmurou gostosa, de dentes trincados.

O bêbado esperava o melhor momento de descer do degrau para a rua com um pé no chão e outro no ar, como alguém inseguro que se prepara para descer de um bonde andando.

O homem da porta juntou os cinco dedos da mão direita e levou-os à boca num beijinho transmitindo ao homem da caixa sua opinião sobre ela.

O homem da caixa respondeu segurando a pontinha da orelha direita como quem diz é uma delícia.

A moça murmurou será que saíram? explicando-se para ninguém.

Os dois homens silenciosos que bebiam cerveja encostados no balcão não estavam mais lá.

A moça ficou de lado e o homem da caixa fez um galeio para ver um pouco mais de peitinho pelo vão lateral da blusinha sem mangas.

A moça emitiu um ah de alívio, puxou o fio até onde dava e meio abaixou-se de costas para dizer mamãe? é Júlia com uma voz abafada por braços e mãos e concentrada no que ia dizer.

O homem da porta, o rapaz do balcão e o homem da caixa se olharam rapidamente.

Olha, eu jantei aqui na cidade com a Marilda. Ora, mamãe, a senhora conhece a Marilda, até já dormiu aí em casa. É, é essa. Olha: agora a gente vai ao cinema, viu? Que tarde, mamãe, tem uma sessão às dez e meia. Se ficar muito tarde eu vou dormir na casa dela. É só porque é mais perto, mamãe, senão a gente ia praí. Não tem. A senhora sabe que não tem. A senhora fala com papai pra mim? Não, eu não vou falar. Tá bom. Eu ligo depois do cinema. Só pra confirmar, hein, porque o mais certo é a gente ir pra lá. Um beijo. Bota a gatinha pra dentro, viu? Chau.

A moça ergueu-se, desligou o telefone e perguntou quanto é.

O homem da caixa não estava mais lá e falou pra você não é nada gostosa, atrás dela.

A moça se voltou rápida e viu que todas as portas do bar estavam fechadas.

Os três homens, narinas dilatadas, formavam um meio círculo em torno dela.

CRÔNICA:"Meio Covarde"

Autor:Ivan Ângelo

Eu devia ter dezesseis, dezoito anos no máximo. Teresa era uma vizinha nova e falada. Não eram necessários muitos motivos para uma moça ficar falada naqueles anos 50, mas Teresa conseguiu reunir quase todos: decote, vestido justo, batom vermelho, sardas, tempo demais na janela, marido noturno e bissexto, muito bolero no toca-discos e, motivo dos motivos, corpo em forma de violão, como se dizia. Entre a minha casa e a dela havia um muro. Na época da antiga vizinha, velha, feia, engraçada, amiga que eu visitava sempre, costumava pular nosso muro para encurtar caminho. Ela não se importava e eu era quase uma criança. Agora, olhando disfarçadamente a nova vizinha, eu ficava pensando como seria bom pular o muro outra vez. Mas para essas coisas sou meio covarde.
                                                                                               
O muro ficava na área do tanque de lavar roupa. Do lado de lá, ela cantava com uma voz sensual, inquietante. Meu pai não gostava, sabe-se lá por quê. Minha mãe também não, pode-se imaginar por quê. Talvez os motivos dele e dela convergissem para o mesmo ponto, embora diferentes, ponto que era o meu motivo para gostar tanto daquele canto. A voz ficava equilibrando-se em cima do muro: "Meu bem, esse seu corpo parece, do jeito que ele me aquece, um amendoim torradinho". Dava para ouvir minha mãe murmurar: "Sem-vergonha". O "torradinho" era quase um gemido rouco, talvez ela cantasse de olhos fechados. De vez em quando umas calcinhas de renda eram penduradas no varal. Minha mãe não suportava aquilo. Eu tinha vontade de espiar por cima do muro para ver o que ela estava fazendo, mas para essas coisas sou meio covarde.

Não era casada - a suspeita era geral. Mulher casada procura as vizinhas, apresenta o marido, pede uma xícara de arroz emprestado. A independência de Teresa insultava a comunidade solidária de mães, avós e filhas, sempre se socorrendo com um molhozinho de couve, uma olhadinha no bebê, um trocadinho para o ônibus. Os homens tinham pouco que fazer naquele quarteirão: meninos jogando bola na rua, adolescentes trabalhando como office-boys ou balconistas de dia e estudando à noite, maridos trabalhando de dia e relaxando à noite com uma cervejinha — todos desejando Teresa. Quando eu voltava do colégio, perto da meia-noite, via-a no alto do alpendre, esperando o marido, o amante: o homem. Eu olhava, ela fumava, eu passava, ela ficava. Com a repetição Teresa já me sorria, mas eu desconfiava do ar zombeteiro dela e nunca acreditei no sorriso. Tinha vontade de enfrentá-la e perguntar, bem atrevido: está rindo de mim ou pra mim? Em casa, na frente do espelho, ensaiava o tom, mãos na cintura. Quando vinha no bonde, de volta do colégio, planejava: hoje eu falo. Mas nunca consegui. Sou meio covarde para essas coisas.

Uma noite ela assoviou. Usava-se naqueles anos um assovio de galanteio, de homem para mulher, um silvo curto logo emendado num mais longo, fui-fuiiiu, que podia ser traduzido em palavras, e até era às vezes, quando a pessoa queria ser mais discreta, ou quando estava contando que assoviaram para ela, e nesse caso a garota falava: fulano fez um fui-fuiu pra mim. As mulheres às vezes usavam o assovio para imitar com certa graça o jeito cafajeste dos homens, e foi o que Teresa fez naquela noite. Tomei coragem, voltei, abri o portão, subi as escadas, parei na sua frente no alpendre. Ela vestia um penhoar azul e sorria da minha ousadia. Eu pretendia parecer desafiador, seguro, dono da situação, mas o sorriso dela não indicava nada disso. Teresa disse com malícia que o marido estava para chegar, não seria bom encontrar-me ali. Concentrei-me no papel tantas vezes ensaiado, respondi que seria ótimo se ele chegasse, que assim eu poderia explicar que ela havia assoviado, que eu havia subido para tomar satisfações, que não sou palhaço... Não creio que a representação tenha sido muito boa: ela continuava sorrindo. Recostou-se na amurada, usando a luz do alpendre como uma atriz num palco, e sua voz quente convidou: "Ele não vem hoje. Quer entrar um pouco?" Deveria ter sido mais prudente e recusado, mas para essas coisas não sou covarde.

Entrei, conversamos sobre o meu futuro e o passado dela. Vem cá ver minhas fotos, me disse, e eu a segui até um quarto pequeno onde havia uma grande cama, um guarda-roupa, uma mesinha com um abajur. Senta, ela disse. Apanhou no guarda-roupa uma caixa e mostrou-me fotografias de quando era mocinha, cartas apaixonadas de antigos namorados, retratos deles ou de outros com declarações de amor nas costas e uns versos dedicados a ela pelo namorado atual. "Ele não é meu marido, não." Eram sonetos copiados de Camões, palavra por palavra. Amor é ferida que dói e não se sente. Busque amor, novas artes, novo engenho. Alma minha gentil que te partiste. "Eu não gosto muito dele, mas gosto que ele me ame assim. Os meus namorados sempre me amaram muito." Tive ciúmes deles e vontade de contar a ela que os sonetos eram de Camões, mas para essas coisas sou meio covarde.

A roupa que Teresa vestia nem sempre estava onde deveria estar. Conversar em cima de uma cama, recostar, mudar o braço de apoio, apanhar coisas para mostrar, buscar conforto são movimentos que podem impedir um penhoar azul de cumprir seu papel, mesmo que a pessoa não queira. Quando chegou a hora de falarmos de nós, disse-lhe que seus olhares e sorrisos me pareciam zombaria e me deixavam encabulado. Que tinha vontade de perguntar a ela "o quê que há?", em tom de briga. Que tinha só dezessete (ou dezoito?) anos. Ela falou que me achava muito sério para minha idade, muito bonitinho também, que quando ouvia barulho de bonde depois das onze corria para o alpendre para me ver e que às vezes me olhava por cima do muro. Tive vontade de contar que sonhava muito com ela. Mas para essas coisas sou meio covarde.

Quase de manhã, pulei o muro que dava para minha casa. Ela me disse que voltasse outras vezes. Era perigoso e eu deveria ter recusado. Mas para essas coisas não sou covarde.


BIOGRAFIA: HUMBERTO WERNECK

Umberto Werneck  nasceu 1945 em Belo Horizonte(MG), mas adotou São Paulo no início da década de 70. Escritor com diversos livros publicados, jornalista com passagem em vários veículos de informação, como o Jornal da Tarde, Veja e Isto É, Werneck celebrizou-se pela qualidade de sua prosa jornalística e por sua apuração minuciosa. Com 40 anos de profissão, começou sua carrreira em 1968, no suplemento Literário do Minas Gerais.
Entre as experiências marcantes em sua vida profissional, estão a passagem pelo Jornal da República, criado por Mino Carta em 1979. O jornal tinha um projeto libertário e inovador, que permitia aos jornalistas, participar de todo o processo, desde a idéia à publicação das matérias. “Aquilo era o sonho para certos tipos de jornalistas, entre os quais eu me incluo. Um veículo em que você participa de todo o processo, desde a idéia, quais matérias fazer; até o título, o olho, o último ponto que você vai pingar na matéria”, disse Werneck. O jornal durou apenas cinco meses, encerrando as atividades por problemas organizacionais e financeiros. “A gente caiu do cavalo. Aprendemos que não basta ter vontade de fazer, todo esse pique. Porque você precisa de uma retaguarda dentro da redação. Uma estrutura por trás do negócio, uns camaradinhas de terno correndo atrás de anúncio”.
A greve histórica dos jornalistas em 1979 também foi outra experiência marcante para Humberto Werneck.  “Ali a gente aprendeu um negócio fundamental sobre os limites da categoria. A gente achava que ia parar aqueles jornais e revistas, e a gente se esqueceu que já tinha uma maneira de se fazer jornal sem jornalistas. Um fura greve poderia mandar as matérias por fax; tinha matéria na gaveta, matéria estrangeira. E as publicações saíam e nós éramos informados sobre a nossa greve pelos jornais, cuja saída tentávamos impedir”.
Entre suas obras, destacam-se O desatino da rapaziada (Cia das Letras, 1996 - esgotado), retrato da geração de jornalistas e escritores mineiros de que fizeram parte Otto Lara Rezende, o songbook Chico Buarque Letra e Música (Cia das Letras, 1996 - esgotado), revisto, consideravelmente ampliado e relançado com o título Tantas Palavras (Cia das Letras, 2006).Organizou e prefaciou as antologias "Boa Companhia: Crônicas" - (Cia. das Letras - 2005) e "Melhores Crônicas de Ivan Angelo", (Ed. Global - 2007). e o recém lançado O Santo Sujo (Cosac Naify, 2008), biografia do músico e boêmio modernista Jaime Ovalle.Dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial - 2009).

CRÔNICA:"Hipocondríaco sem remédio"

Autor:Humberto Werneck

 Foi eu abrir a minha caixinha de pílulas, no café da manhã, e ele esticar o pescoço para xeretar, tomado de súbita excitação:
— O que temos aí?
Tínhamos ali uns poucos e modestos fármacos, como ele gosta de dizer, não mais que três bolotinhas brancas — e, diante do espetáculo pífìo, meu amigo pôs no rosto uma expressão de superioridade próxima do desprezo. Sacou sua própria caixinha - palavra reles demais para descrever o estojo de metal esmaltado que, por simples ação de presença, reduziu a nada o recipiente de plástico plebeu onde os meus ridículos comprimidos se comprimiram ainda mais, cobertos de vergonha farmacológica. Um botãozinho, plec, descortinou teatralmente a profusão de pílulas, de diferentes cores, formatos e tamanhos, para os mais variados males, presentes, futuros e passados, sem excluir os imaginários. Como um lapidário com seus brilhantes e rubis, ele espalhou as gemas sobre a mesa e foi fazendo as apresentações: esta é para isto, esta para aquilo...

Cada qual tem nesta vida um assunto em que se sente mais à vontade, e o desse meu amigo é remédio. Mas não qualquer um. Não ousem falar com ele de chás, florais, homeopatia. Muito menos de medicamentos baratos, a seu ver incapazes, já por motivos econômicos, de surtir efeito: é preciso que haja sofrimento monetário. Remédio sem bula? Meu amigo não passa sem essa literatura de terror em que o nome mais simples de personagem tem sete sílabas.
Faz mais fé nas pílulas coloridas do que nas brancas, nas cápsulas do que nos comprimidos e, sobretudo, nas pastilhas efervescentes, que nem entraram ainda no organismo e já estão, com suas borbulhas, mostrando serviço. É ver uma injeção e dar o braço a picar. Gosta de remédio que arde - sinal de que está fazendo efeito. "Zé Febrinha",como costumamos chamá-lo, carrega seu termômetro aonde quer que vá. Adora consulta médica, ocasião em que 0 assunto é ele, só ele e suas entranhas, e se anima todo durante 0 interrogatório a respeito da caxumba na infância. É com entusiasmo futebolístico que fala de suas passagens por salas de cirurgia, nas quais vem deixando seus miúdos, das amígdalas ao prepúcio, do apêndice à vesícula biliar.
— Estou indo aos poucos — anuncia ele orgulhosamente.
Dia desses, ao telefone, enveredou pelo relato de seu despertar após a cirurgia de vesícula. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que percebeu, sobre o criado-mudo, foi um pote de vidro em cujo interior transparecia uma pedra escura e disforme.
— Maior pedregulho, meu! — disse ele, feliz como garimpeiro que acaba de recolher na bateia um graúdo diamante. Poucos homens já vi gabarem-se com tão segura vaidade no quesito tamanho. Ou — que ele não me leve a mal — galinha cacarejar com tanto júbilo ao botar um ovo.
O seu entusiasmo não diminuiu nem mesmo quando, incorporando o meu ocasional espírito de porco, observei que uma ostra é capaz de feito bem maior, já que produz pérolas, não calhaus fuliginosos.
— Você não sabe de nada — desdenhou ele, em seu pétreo orgulho mineral, e entrou a falar da fita de vídeo que encontrou ao lado do potinho, ao voltar da anestesia: 0 filme, sem cortes, da sua cirurgia. A primeira peça, espera meu amigo, de uma videoteca ambientada exclusivamente em suas entranhas.
Cerveja na mão e cumbuca de amendoim ao lado, ele já pôs para rodar incontáveis vezes essa produção intimista, e, cinéfilo visceral, se compraz em descrever as passagens mais emocionantes da extração de sua vesícula.
— Finalmente há uma prova de que você tem vida interior — disse eu.
— Você vai ver na primeira vez que vier aqui em casa — retrucou ele, não sei se como promessa ou ameaça.
Como alguém que gostou mais do livro que do filme, meu amigo preferiu a pedra ao vídeo.
— Já me abriram várias vezes — deu-se à pachorra de explicar — e nunca encontraram nada bom, só coisas inaproveitáveis. Agora acharam essa pedra. Pode não ser uma pérola, como você diz, mas dá para guardar de lembrança.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

BIOGRAFIA: CORA RÓNAI


Cora Tausz Rónai (Rio de Janeiro, 31 de julho de 1953) é uma jornalista brasileira. Iniciou sua carreira no jornalismo em Brasília. Trabalhou no Jornal de Brasília, no Correio Braziliense e nas sucursais da Folha de S. Paulo e do Jornal do Brasil. Em 1980 voltou para o Rio de Janeiro. Em 1982 deixou o Jornal do Brasil, ao qual retornaria alguns anos depois, para dedicar-se à literatura e ao teatro infantis.Pioneira do jornalismo de tecnologia, lançou em 1987, no Jornal do Brasil, a primeira coluna sobre computação da grande imprensa brasileira. Usuária de computador pessoal desde 1986, usava, já então, o estilo de escrita coloquial que caracteriza o seu trabalho, seja na área cultural, seja na área tecnológica.Foi a primeira jornalista brasileira a criar um blog, o internETC., ativo desde 2001, e primeira a dedicar-se à fotografia digital como ferramenta de comunicação. Nos primórdios do Fotolog, a página que ilustrava com fotos do Rio de Janeiro e de suas viagens chegou a ser a mais visitada do mundo.Em maio de 2006, consolidou seu trabalho como pioneira também no uso dos celulares com câmera lançando o livro Fala Foto, seleção de imagens realizadas ao longo de cinco anos com mais de uma dezena de diferentes aparelhos celulares. "Fala Foto", finalista do Prêmio Jabuti, foi o primeiro livro de fotos de celulares do mundo. Parte das fotos do livro foi exibida numa individual na Mercedes Viegas Arte Contemporânea, importante galeria carioca, outro feito inédito para instantâneos colhidos por celulares, sem pretensões artísticas.No jornal O Globo, onde trabalha desde 1991, criou o caderno de tecnologia "Info etc.", que editou até 2008.Recebeu o Prêmio Comunique-se de Melhor Jornalista de Informática em 2004 e em 2006.É conhecida também pela defesa incondicional do Rio de Janeiro, dos animais e do meio-ambiente. É esposa do cartunista Millor Fernandes.

 Livros Publicados

  • "Álbum de Retratos: Walter Firmo" (Mauad)
  • "Uma Ilha lá Longe" (Record)
  • "Caiu na Rede" (Agir)
  • "Fala Foto" (Senac Rio)
  • "Um História de Videogame" (Record)
  • "Há milhões de Anos Atrás" (Globo)
  • "Cabeça Feita Pé Quebrado" (Globo)
  • "A Princesa e a Abóbora" (Globo)
  • "Sapomorfose" (Salamandra)
  • "Idéias: um Livro de Entrevistas" (UnB)
  • "O Barbeiro de Sevilha e as Bodas de Fígaro" (Ediouro)

CRÔNICA:"Iniciação"

 
Autora:Cora Rónai

Nasci em Ardnamurchan, você não vai conseguir nem pronunciar, quanto mais entender. Mas não faz mal, Maria Clara, porque isso já foi há tanto tempo. Hoje não importa mais. Basta você saber que fica na Escócia e que é um lugar muito frio e muito úmido a maior parte do ano, onde as pessoas são tristes e fechadas em si mesmas. Talvez assim você compreenda por que sou como sou de vez em quando. Ou não, quem sabe. De qualquer forma, tudo isto está muito além do que precisamos saber um sobre o outro. Um café?

Archibald ergue-se da poltrona devagar, toma cuidado para não derrubar os livros que tem sobre os joelhos. Escolhe um disco na estante.

— Bach, Maria Clara, que tal? Gottes Zeit ist die alerbeste Zeit, tenho certeza de que você vai gostar.

Maria Clara estica-se no tapete, fecha os olhos aos primeiros compassos. Ultimamente, esforça-se para entender Archibald, gostar das cantatas, sonatas e motetos que povoam a casa. Já consegue reconhecer a música de alguns compositores, pequenos testes que ele lhe apresenta. Vamos ver se você adivinha de quem e este cânon?

Sentam-se à mesa, arrumam as xícaras, o café, está bom de açúcar? Archibald remexe uma pilha de cadernos, procura a pagina certa.

— Então, vamos ver o que você fez de bom?

Gosta de dar aulas para Maria Clara: elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo décimo ano consecutivo, as mesmas coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e desinteressantes. Seu relacionamento com os alunos é frio, quase impessoal: um pouco por timidez, um pouco por européias noções de hierarquia que se recusa a abandonar. Isso nunca chegou a incomodá-lo, especialmente há alguns anos atrás, quando a presença de Lillian tornava outras presenças desnecessárias. Depois, as relações entre ambos foram-se deteriorando e, quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a acompanhá-lo. Embora tivesse sentido algum prazer em mortificar-se com o fracasso de seu casamento, anos depois Archibald se viu forçado a reconhecer que, na época, o que sentira fora principalmente uma sensação de alívio e liberdade. Não havia mais ninguém para controlar-lhe os movimentos ninguém para reclamar dos cachimbos, impedi-lo de dedicar-se a seus poemas ou abaixar o volume da vitrola. Não havia mais ninguém, igualmente, para afagar-lhe os cabelos, nenhum corpo à noite. Esta ausência, entretanto, só veio a notar muito tempo depois na verdade, quando começou a dar aulas para Maria Clara. Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com quem conversar, algum amigo. Mas os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não se encontra nos homens atraentes, o desacostumaram de conversas íntimas, de confidências sussurradas a meia luz por sobre os cinzeiros. Na universidade, não consegue trocar mais do que polidos cumprimentos com os colegas; dos alunos, sente-se cada vez mais distante com o passar dos anos. Aos 40 anos é um homem só — e, se por um lado, a solidão ensinou-lhe muito a respeito de si mesmo, há sentimentos sobre os quais não lhe disse nada, dos quais começa a ter medo porque os julgava esquecidos para sempre.

Maria Clara, marcando o ritmo da cantata com os dedos, conta o número de ripas da veneziana entreaberta, percorre as estantes com os olhos, as lombadas verdes, vermelhas, a imensa pilha de livros de bolso alaranjados. Observa seu professor, a cabeça curvada sobre o caderno, cachimbo numa das mãos enquanto com a outra anota erros, faz correções. Os cabelos muito lisos, desmaiados entre o louro e o cinza, caem-lhe sobre os olhos: quando o cachimbo está preso entre os dentes, a mão, livre, joga-os para trás num gesto inútil.

— Muito bom o trabalho. Você está melhorando, sabe. Ainda tem alguma dificuldade em expor seu raciocínio numa linha uniforme, mas acho que, na sua idade, nem poderia ser de outra maneira. E erros de ortografia, precisa prestar mais atenção ao que escreve, menina.

— Mas é que inglês é muito complicado. Muito mesmo.

— Um pouco de atenção resolve muitas complicações. Há um texto de Saroyan muito bonito que eu quero que você conheça. Vou ditá-lo para você, a metade hoje, a metade amanhã. Onde será que coloquei o livro?

Levanta-se da mesa, vai até uma das estantes onde percorre os livros com a ponta dos dedos, puxa um volume pequeno, encadernado em amarelo. Escolhe também outro disco, que leva para a vitrola.

— Mais Bach Suite em Ré Maior para violoncelo, Rostropovitch. Pegue o caderno, escreva: pronta? Esta prestando atenção? In the time of our life, live — so in that good time there shall be no ugliness or death for youself or any life your life touches. Seek goodness everywhere and when it is found, bring it out of its hiding-place...

— O quê?

— Hiding-place. Esconderijo. Bring it out of its hiding-place and let it be free and unashamed. Place in matter and in flesh the least of values, for these are the things that hold death and must pass away.

Lê muito devagar, separando as frases com cuidado. Maria Clara gosta das palavras, gosta do som que adquirem na pronúncia clara e um pouco cantada de Archibald. Se ao menos não precisasse anotá-las! Sente que poderá passar ali o resto da vida, ouvindo-as uma após a outra, absorvendo-as tão completamente que, depois de algum tempo, perderiam todo o significado para tornarem-se apenas fragmentos de sons encadeados, como a sonata de Bach que a vitrola repete em surdina. Ou seria uma suite?

— Discover in all things that which shines and is beyond corruption. Vamos parar por aqui, hoje. Não e bonito? Deixe o caderno comigo. Não vou poder corrigir nada agora, dentro de meia hora tenho que estar numa reunião na faculdade, você vai ter que ir embora mais cedo. Sabe que os Beatles vão tocar nos Estados Unidos?

— Claro que sei.

— Então este vai ser o seu dever de casa: escrever trinta linhas sobre a tournée.

— Mas como é que eu posso escrever sobre alguma coisa que ainda não aconteceu?

— Usando a sua imaginação, por exemplo.

Poderia passar ali o resto da vida, entre os sons, o cheiro do fumo e os olhos acinzentados.
Depois de quase um ano, ainda não sabe exatamente por que aceitou dar aulas para Maria Clara, filha de um professor de física que acabara de voltar da Inglaterra: para que a menina não perca todo o inglês que aprendeu por lá. Pensou, então, que a experiência talvez valesse a pena. Mas quando a conheceu, jeans surrados, os cabelos escuros e compridos presos num rabo de cavalo, um jeito preguiçoso, disco dos Beatles embaixo do braço, chegou a arrepender-se de não ter afastado a idéia definitivamente. Para sua surpresa, porém, Maria Clara interessava-se muito mais pelo inglês do que julgara a principio. E embora inicialmente a tratasse com o mesmo distanciamento que reservava a todos os alunos — e, de resto, a todo o mundo, sem distinções — começou, com o correr do tempo, a descobri-la e, através dela, toda uma geração que nunca despertara seu interesse antes. Começara a descobrir em si próprio reações que julgava impossíveis, o riso, a conversa fácil e aberta. Divertia-se ouvindo-a contar o dia-a-dia do ginásio, ouvindo-a falar de colegas e professores, dos últimos lançamentos dos Beatles, dos olhos de Paul MacCartney ou das letras de John Lennon. Mais tarde, tornou-se cúmplice de cigarros fumados às escondidas pelos banheiros, corridas em motocicletas clandestinas e aulas mortas no terraço entre brincadeiras e jogos de batalha naval. eu contei para você mas você jura que não vai contar para o meu pai? Maria Clara também começou a descobrir coisas novas como as crises de choro sem motivo algum, as horas passadas ao lado da vitrola, os olhos perdidos no espaço ao som de concertos e motetos.

Há dias em que não sabe se vai conseguir sobreviver a todas as terças, quintas e fins de semana que a esperam sem aulas de inglês. Especialmente quando o tempo começa a escurecer, quando não há sol, não há passeios nem piscinas. As horas passam devagar e, na escola, há o sentimento do tempo e das aulas perdidas, para que matemática, história, geografia se tudo o que precisa aprender é inglês, se sabendo inglês conquistará o mundo e quem sabe Archibald, conseguirá ir até Ardnamurchan onde quer que fique e conhecer os vales verdes, as altas montanhas, o clima que sabe frio e úmido a maior parte do ano. Quinta-feira escorre inútil, a sexta arrasta-se pelas aulas de desenho e francês, pela geografia escamoteada no terraço, o cigarro escondido atrás das costas. De tarde, as horas são ainda mais lentas e há o tamborilar da chuva nas vidraças, há uma goteira na sala e uma professora irritada com a chuva, com a goteira, com os alunos. Há também um ensaio da classe de teatro às quatro e meia e, às quinze para as seis, há a sineta e a liberdade. Sacola as costas, Maria Clara corre feliz, enfrenta a chuva, atravessa a rua, segue a avenida, dobra a esquerda, novamente atravessa uma rua e, quando toca a campainha de Archibald está molhada da cabeça aos pés, a roupa colada ao corpo, a blusa branca transparente de chuva.

— Mas não é possível! Será que você não tinha um guarda-chuva, não podia esperar uma carona?

— É que não pensei que estivesse chovendo tanto assim. Nossa, estou ensopada.

— Entre. Você não vai poder ficar assim. Vá até o banheiro, tome um banho bem quente e vista o meu roupão que está pendurado ao lado do chuveiro. Depois nós poderemos colocar as suas roupas em frente ao fogão, acabarão secando. Ande depressa.

Na cozinha, Archibald liga a cafeteira elétrica ouvindo o barulho do chuveiro. tenta concentrar-se nas colheradas de pó, na água, mas não consegue esquecer a blusa molhada de Maria Clara, os seios de Maria Clara, Maria Clara nua no chuveiro, a água escorrendo pelo corpo jovem e moreno. Tenta pensar nos vinte e seis anos que os separam, na tampa da cafeteira que não quer fechar. Volta para a sala e, acendendo o cachimbo, procura o Saroyan da aula passada, relê o ditado de Maria Clara, os seios de Maria Clara, sua pele molhada e brilhante...

— Ficou meio grande o teu roupão, estou me sentindo ridícula.

—Não há motivo. Está linda, e pelo menos não vai ficar gripada. Estou preparando um café, achei que você precisaria beber algo quente. Vou buscar.

Maria Clara senta-se no tapete, pernas cruzadas, tenta ajeitar o roupão lilás em volta do corpo. As mangas cobrem suas mãos, diverte-se levantando-as e olhando para as pontas caídas como hastes dobradas. Archibald traz a bandeja, coloca-a em cima da mesa, inclina-se sobre Maria Clara para entregar-lhe a xícara. A proximidade súbita, o roupão entreaberto, os seios de Maria Clara criam uma atmosfera carregada que os cadernos e uma missa de Haendel não conseguem disfarçar. Volta para a poltrona, olha-a de frente, os cabelos molhados, o roupão, as pernas cruzadas, o rosto pálido. Maria Clara estremece, sente que alguma coisa está acontecendo mas não sabe o que é. Imagina que Archibald a quer, repele o pensamento que volta, intenso, segundos depois. Luta com as mangas do roupão para segurar a xícara, ri, nervosa.

— Estou parecendo uma débil mental.

— Espere. Vou dobrar as mangas para você, do jeito que estão você nunca vai conseguir beber este café.

Deixa-se escorregar da poltrona, caminha sobre o tapete com os joelhos no chão, aproxima-se de Maria Clara. Toma-lhe uma das mãos, começa a dobrar a manga com cuidado, como se mexesse com alguma coisa frágil e quebradiça.

— Você está tremendo...!

— Estou congelada.

Segura a mão tremula e fria entre as suas, levanta o rosto devagar. Os olhos de Maria Clara em frente aos seus, o cheiro de Maria Clara, os seios de Maria Clara... puxa-a para si, beija-lhe a testa, os olhos, a boca.

— Eu te queria tanto.

Ela treme, tem medo, está feliz. A mão de Archibald atravessa o roupão, acaricia os seios. Tenta afastá-lo.

— Não faz isso.

A mão foge, sobe para os ombros, abaixa o roupão.

— Archie, não.

— Por que não? Eu quero você, eu amo você. Vem, você é minha. Bem quietinha, não se mexe.

Maria Clara senta-se imóvel, a respiração ofegante. Archibald desamarra o cinto, o roupão escorrega, Maria Clara nua, tremula de medo e de expectativa, o coração aos saltos.

As mãos a percorrem, acariciam os seios, a barriga, procuram as pernas, escondem-se entre as coxas.

— Vem. Eu vou ensinar tudo para você, tudo. Isto é uma coisa muito mais bonita do que o inglês, vem, muito mais, vou te ensinar tudo. Deita.

Maria Clara deita-se no tapete, olha para o lado. Tem vontade e vergonha de olhar Archibald despir-se, mas sente seus movimentos, a camisa atirada em direção a poltrona, os pés que empurram as calças e estremece quando o tem ao lado, quando as mãos a envolvem e guiam suas mãos tímidas, quando os dedos percorrem seu corpo, caminhando de leve pelas pernas, subindo sentindo-a úmida e entregue, quando o tem por cima de si, tão suave e aflito, quando os joelhos forçam suas pernas, as palavras perdem o nexo e o mundo explode, eu te queria tanto.

 
Anos depois, Maria Clara soube, através da carta de um amigo que a cumprimentava pelo vigésimo quarto aniversário,que Archibald viajara na ocasião tomando rumo ignorado e nunca mais deu notícias.