terça-feira, 30 de novembro de 2010

BIOGRAFIA: FERREIRA GULLAR


Ferreira Gullar,pseudônimo de José Ribamar Ferreira é um poetae ensaísta brasileiro, nasceu em 10 de setembro de 1930, em São Luiz, MA.Em 1948,publica seu primeiro livro de poesia, "Um pouco acima do chão".Muda-se para o Rio de Janeiro em 1951.Lança "A luta corporal". No fim desse ano, passa a trabalhar como revisor na revista "Manchete".Ingressa no Centro Popular de Cultura (CPC).Publica "João Boa-Morte, cabra marcado para morrer" e "Quem matou Aparecida". Assume, com essas publicações, uma nova atitude literária de engajamento político e social. Funda o "Grupo Opinião",que em 1966 encena a peça "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", escrita em parceria com Oduvaldo Viana Filho.O "Poema sujo" é escrito em 1975.Lança em 1980 "Toda poesia", reunião de sua obra poética.Em 1987 lança "Barulhos".Colabora com Dias Gomes na novela "Araponga".Lança, em 1997 "Cidades inventadas".No ano seguinte publica "Rabo de foguete - Os anos de exílio".Lança, em 1999, o livro "Muitas vozes".Em 2002, é indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. 

CRÔNICA:"A Estante"

Autor:Ferreira Gullar

Naquele novo apartamento da rua Visconde de Pirajá pela primeira vez teria um escritório para trabalhar. Não era um cômodo muito grande mas dava para armar ali a minha tenda de reflexões e leitura: uma escrivaninha, um sofá e os livros. Na parede da esquerda ficaria a grande e sonhada estante que caberia todos os meus livros. Tratei de encomendá-la a seu Joaquim, um marceneiro que tinha oficina na rua Garcia D'Avila com Barão da Torre.

O apartamento não ficava tão perto da oficina. Era quase em frente ao prédio onde morava Mário Pedrosa, entre a Farme de Amoedo e a antiga Montenegro, hoje Vinicius de Moraes. Estava ali há uma semana e nem decorara ainda o número do prédio. Tanto que, quando seu Joaquim, ao preencher a nota da encomenda, perguntou-me onde seria entregue a estante, tive um momento de hesitação. Mas foi só um momento. Pensei rápido: "Se o prédio do Mário é 228, o meu, que fica quase em frente, deve ser 227. "Mas lembrei-me de que, ao ir ali pela primeira vez, observara que, apesar de ficar em frente ao do Mário, havia uma diferença na numeração.

— Visconde de Pirajá 127 —  respondi, e seu Joaquim desenhou o endereço na nota.

— Tudo bem, seu Ferreira. Dentro de um mês estará lá sua estante.

— Um mês, seu Joaquim! Tudo isso? Veja se reduz esse prazo.

— A estante é grande, dá muito trabalho... Digamos, três semanas.

Contei as semanas. Não via chegar o momento de ter no escritório a estante sonhada, onde enfim poderia arrumar os livros por assunto e autores. E,mais que isso, sentir-me um escritor de verdade, um profissional, cercado de livros por todos os lados. No dia da entrega, voltei do trabalho apressado para ver minha estante.

— Como é, veio? — perguntei ao entrar.

— Veio o quê?

— Como o quê? A estante!

Não viera. Seu Joaquim não cumprira com a palavra empenhada, ah português filho de... Telefonei para ele sem dissimular, no tom da voz, minha irritação. E ele:

— Como não cumpri? Andei com dois homens de cima para baixo da rua e não encontrei o tal número que o senhor me indicou. Não existe na rua Visconde de Pirajá o número 127, senhor Ferreira.

Fiquei sem ação. Dera a ele o número errado.

— Diga-me o número certo e sua estante estará em sua casa amanhã mesmo.

Fiquei sem palavra. Se não era 127, qual número seria? Não era 227, disso
tinha certeza... E o Joaquim ao telefone:

— Qual o número, seu Ferreira?

— É 217, seu Joaquim... É isso, 217.

— Muito bem, 217. Já anotei. Amanhã terá sua estante.

Não tive. Ao chegar em casa e verificar que a estante não estava lá, conclui que havia dado de novo o número errado ao marceneiro. E corri para o telefone a fim de me desculpar.

— Seu Joaquim, é o senhor Ferreira... da estante.

— O senhor está querendo brincar comigo?

Fui tomado por um frouxo de riso, enquanto seu Joaquim, indignado, dizia que não ia mais entregar estante nenhuma, que eu fosse buscá-la, pois já era a segunda vez que subira e descera a Visconde de Pirajá, carregando aquela estante enorme, etc. etc...

CRÔNICA:"Sobre o amor"


Autor:Ferreira Gullar


Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a idéia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.

Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo.

O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem a traídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma COisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança.

Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventUra sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério - o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas.

Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.

A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tUdo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente.

Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda­roupa, a cômoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tUdo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar­se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer.

E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas... Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!...

Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não.

AS COBRAS-TIRA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Luis Fernando Verissimo desenhou As Cobras durante quase trinta anos, para vários jornais. Em 1997, ao completar 60 anos, o escritor concluiu que “não ficava bem um sexagenário desenhando cobrinhas” e as aposentou.
São personagens criados no início dos anos 70, quando Veríssimo escrevia diariamente para o jornal Folha da Manhã, de Porto Alegre. A idéia era “um desenho rápido, que não desse muito trabalho e substituísse o texto da minha coluna, nas edições de sábado”, explica o autor. “Por que cobras? Porque cobras é fácil de desenhar. Cobra é só pescoço e não tem mão.”
Três anos mais tarde, já cult na imprensa gaúcha, As Cobras apareceram pela primeira vez em livro junto com outros desenhos (As Cobras e outros Bichos, L&PM, 1977). Na introdução ao livro, Verissimo afirma que já desenhava antes de escrever, mas faz uma avaliação bem-humorada de seus dotes artísticos:
“Tenho um problema curioso para um desenhista. Não sei desenhar. Isto não me impede de insistir com o desenho, apesar dos conselhos de amigos, das indiretas da família e de telefonemas ameaçadores. Insisto, em primeiro lugar, por conveniência. Não digo que uma imagem valha mil palavras, mas umas 500 – o necessário para encher uma coluna de jornal – vale. Qualquer cronista diário daria a sua mão direita para poder desenhar em vez de escrever, de vez em quando, se fosse canhoto.”
Exagerado na auto-crítica, claro. As tiras das Cobras têm a concisão dos melhores humoristas e a linguagem certeira de um dos textos mais admirados do país.(Vide as crônicas do"Analista de Bagé").

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 CRÔNICA:"O Analista de Bagé"

Autor:Luis Fernando Verissimo

Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.

— O senhor quer que eu deite logo no divã?

— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.

— Certo, certo. Eu...

— Aceita um mate?

— Um quê? Ah, não. Obrigado.

— Pos desembucha.

— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?

— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.

— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe

— Outro.

— Outro?

— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.

— E o senhor acha...

— Eu acho uma pôca vergonha.

— Mas...

— Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!



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Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.

— Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou concordando.

— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! . Qual é o causo?

— Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento...

— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?

— Eu não meti a espora. Não é, meu bem?

— Não fala comigo!

— Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.

— Ela tem um problema de carência afetiva...

— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.

— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...

— Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?

— Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?

— Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?

— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.

— Mas isto tá ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no pelego.

— Eu?

— Ela. Tu espera na salinha.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

BIOGRAFIA: MILLÔR FERNANDES

Considerado "um dos poucos escritores universais que possuímos", na opinião do crítico Fausto Cunha, Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923 no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro.Só seria registrado no ano seguinte, tendo como data oficial de nascimento o dia 27 de maio de 1924.
Nasceu Milton Viola Fernandes, tendo sido registrado, graças a uma caligrafia duvidosa, como Millôr, o que veio a saber adolescente. Aos dez anos de idade vendeu o primeiro desenho para a publicação O Jornal do Rio de Janeiro. Recebeu dez mil réis por ele. Em 1938 começou a trabalhar como repaginador,e contínuo no semanário O Cruzeiro. No mesmo ano ganhou um concurso de contos na revista A Cigarra (sob o pseudônimo de "Notlim"). Assumiu a direção da publicação algum tempo depois, onde também publicou a seção "Poste Escrito", agora assinada por "Vão Gôgo".
Em 1941 voltou a colaborar com a revista O Cruzeiro, continuando a assinar como "Vão Gôgo" na coluna "Pif-Paf", o fazendo por 18 anos. A partir daí passou a conciliar as profissões de escritor, tradutor (autodidata) e autor de teatro.
Já em 1956 dividiu a primeira colocação na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires com o desenhista norte-americano Saul Steinberg. Em 1957, ganhou uma exposição individual de suas obras no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Dispensou o pseudônimo "Vão Gôgo" em 1962, passando a assinar "Millôr" em seus textos n'O Cruzeiro. Deixou a revista no ano seguinte, por conta da polêmica causada com a publicação de A Verdadeira História do Paraíso, considerada ofensiva pela Igreja Católica.
Em 1964 passou a colaborar com o jornal português Diário Popular e obteve o segundo prêmio do Salão Canadense de Humor. Em 1968 começou a trabalhar na revista Veja, e em 1969 tornou-se um dos fundadores do jornal O Pasquim.
Nos anos seguintes escreveu peças de teatro, textos de humor e poesia, além de voltar a expor no Museu de Arte Moderna do Rio. Traduziu, do inglês e do francês, várias obras, principalmente peças de teatro, entre estas, clássicos de Sófocles, Shakespeare, Molière, Brecht e Tennessee Williams.
Depois de colaborar com os principais jornais brasileiros, retornou à Veja em setembro de 2004, deixando a revista em 2009.

CRÔNICA:"Discurso de Deus a Eva".


Autor:Millôr Fernandes


"... Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio.  A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia.  E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: "O AUTOR! O AUTOR! O AUTOR!".

"P.S. - Este discurso do Todo-Poderoso está sendo divulgado pela primeira vez em todos os tempos, aqui neste Blog.  Nunca foi publicado antes, nem mesmo pelo seu órgão oficial, A BÍBLIA."

"Minha cara,

eu te criei porque o mundo estava meio vazio, e o homem, solitário. O Paraíso era perfeito e, portanto, sem futuro. As árvores, ninguém para criticá-las; os jardins, ninguém para modificá-los; as cobras, ninguém para ouvi-las. Foi por isso que eu te fiz. Ele nem percebeu e custará os séculos para percebê-lo. É lento, o homenzinho. Mas, hás de compreender, foi a primeira criatura humana que fiz em toda a minha vida. Tive que usar argila, material precário, embora maleável. Já em ti usei a cartilagem de Adão, matéria mais difícil de trabalhar, mais teimosa, porém mais nobre. Caprichei em tuas cordas vocais, poderás falar mais, e mais suavemente. Teu corpo é mais bem acabado, mais liso, mais redondo, mais móvel, e nele coloquei alguns detalhes que, penso, vão fazer muito sucesso pelos tempos a fora. Olha Adão enquanto dorme; é teu. Ele pensara que és dele. Tu o dominarás sempre. Como escrava, como mãe, como mulher, concubina, vizinha, mulher do vizinho. Os deuses, meus descendentes; os profetas, meus public-relations, os legisladores, meus advogados; proibir-te-ão como luxúria, como adultério, como crime, e até como atentado ao pudor! Mas eles próprios não resistirão e chorarão como santos depois de pecarem contigo; como hereges, depois de, nos teus braços, negarem as próprias crenças; como traidores, depois de modificarem a Lei para servir-te. E tu, só de meneios, viverás.

Nasces sábia, na certeza de todos os teus recursos, enquanto o Homem, rude e primário, terá que se esforçar a vida inteira para adquirir um pouco de bens que depositará humildemente no teu leito. Vai! Quando perguntei a ele se queria uma Mulher, e lhe expliquei que era um prazer acima de todos os outros, ele perguntou se era um banho de rio ainda melhor. Eu ri. O homem e um simplório. Ou um cínico. Ainda não o entendi bem, eu que o fiz, imagina agora os seus semelhantes.

Olha, ele acorda. Vai. Dá-me um beijo e vai. Hmmmm, eu não pensava que fosse tão bom. Hmmmm, ótimol Vai, vai! Não é a mim que você deve tentar, menina! Vai, ele acorda. Vem vindo para cá. Olha a cara de espanto que faz. Sorri! Ah, eu vou me divertir muito nestes próximos séculos!"

CRÔNICA:"O Banheiro"

Autor:Millôr Fernandes

"Quem aumenta seu conhecimento aumenta a sua dor"
(Eclesiastes, I, 18)

Não é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranqüilidade. É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego. Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se entregar à sua meditação e à sua prece. Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a viver montado em lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade forçada de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos, hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa — o banheiro. Se não lhe batem à porta outros homens (pois um lar por definição é composto de mulher, marido, filho, filha e um outro parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e morais) ele, ali e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona, se reflete, se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere, assalta, Aqui é que o chefe da casa, à altura dos quarenta anos, olha os cabelos grisalhos, os claros da fronte, e reflete, sem testemunhas nem cúmplices, sobre os objetivos negativos da existência que o estão conduzindo — embora altamente bem sucedido na vida prática — a essa lenta degradação física. Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de sua obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais constante num mundo encharcado de instabilidade. É nesse mesmo banheiro que o filho de vinte anos examina a vaidade de seus músculos, vê que deve trabalhar um pouco mais seus peitorais, ensaia seu sorriso de canto de boca, fica com um olhar sério e profundo que pretende usar mais tarde naquela senhora mais velha do que ele mas ainda cheia de encantos e promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem ler a carta secreta que recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados pelo resto da família. Já leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o tempo e a solidão necessários para degustá-la e suspirá-la. É aqui também que ela vem verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de horror e desprezo. É aqui que a dona de casa, a mãe de família, um tanto consumida pelos anos, vem chorar silenciosamente, no dia em que descobre ou suspeita de uma infidelidade, erro ou intenção insensata da parte do marido, filho, filha, irmãos. Aqui ninguém a surpreenderá, pode amargurar-se até aos soluços e sair, depois de alguns momentos, pronta e tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para enfrentar sorridente os outros misteriosos e distantes seres que vivem no mesmo lar.
Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma careta equívoca no espelho do banheiro nem existe ninguém que nunca tenha tido um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria. Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem dispostos. O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o corpo do homem e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento de solidão ocasional. Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu último espelho — que é o propriamente dito.
Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!

CRÔNICA:"Pensadores Humoristas"


Autor:Millôr Fernandes


(O filósofo tcheco Arnost Kolman disse: "A liberdade de imprensa que vocês têm é apenas no papel."Bertrand Russel respondeu: "Não é o lugar próprio?").

Desculpem, mas todo grande pensador, sobretudo pensador social, é um humorista. O riso explode, à primeira vista, quando uma grande verdade social é enunciada de maneira clara e comunicativa: "Toda propriedade é um roubo" (Proudhom). "Todo lucro é um roubo" (Shaw).
"Que é um assalto a um banco diante de um banco?" (Brecht).
Bertrand Russel também não fez por menos. Pensador nato, gozador nato, desmi(s)tificador nato:
"Se houvesse uma condenação de seis meses pela publicação de cada primeiro livro, só os verdadeiros escritores publicariam suas obras".
"Gladstone, antes de qualquer atitude, sempre consultava a sua consciência. E sua consciência sempre lhe dava a resposta mais conveniente."
"Se um homem te oferece democracia e outro te oferece comida, até que grau de fome você prefere o voto?"
"Muitos casamentos são iguais a um ato de prostituição, só que mais difíceis da gente se livrar deles."
"Fanatismo é a coisa mais perigosa que conheço: chego até a dizer que sou fanático contra o fanatismo."
"Não possuir algumas coisas de que se necessita é parte fundamental da felicidade."
"Um dos maiores triunfos da matemática moderna é ter conseguido descobrir, afinal, o que é a matemática."
"Os chamados Expoentes da Moralidade são pessoas que abandonaram os prazeres comuns e se realizam atrapalhando o prazer dos outros."
"Chama-se pornografia qualquer coisa que escandalize um magistrado senil e ignorante."
"Os filósofos pré-Kant tinham uma grande vantagem sobre os filósofos pós-Kant: não precisavam gastar anos e anos estudando Kant."
"Hegel enuncia sua filosofia de maneira tão obscura que, portanto, só pode ser profunda."
"Sempre achei que as pessoas respeitáveis são canalhas e todo dia me olho ansiosamente no espelho tentando descobrir sinais de minha canalhice."
"Ciência é tudo aquilo que você sabe. Filosofia é tudo aquilo que você não sabe."
"Os homens nascem ignorantes, não estúpidos. Para torná-los estúpidos são necessários anos e anos de educação."
"Aristóteles poderia ter evitado o tremendo erro de afirmar que os homens têm mais dentes do que as mulheres, simplesmente permitindo que madame Aristóteles abrisse a boca."
"As reservas de urânio no mundo são muito pequenas. Teme-se que possam acabar antes mesmo da raça humana."
"Como eu sou pago por palavra, só escrevo palavras bem pequenininhas."
Creio que o único livro humorístico (própriamente dito) escrito por Berthand Russel é The Good Citizen's Alphabet (O Alfabeto do Bom Cidadão), da Gaberbocchus Press, 1953. Sem falar no prefácio de Professor Mmaa's Lecture, de Stefan Themerson, no qual Russel declara:
"O mundo tem gente demais acreditando em coisas demais.  Se houvesse menos gente acreditando em menos coisas, talvez tudo fosse melhor."
O Good Citizen's, com desenhos esplêndidos de Franciszka Themerson (mulher de Sthefan?) é apenas um abecedário cívico "não facilmente entendível para quem não tenha capacidade de entendê-lo". Exemplo de algumas definições:
Asneira - O que você pensa.

Bolchevique
- Alguém de quem eu discordo.

Diabólico
- Aquilo que tem possibilidade de diminuir a renda dos ricos.

Estúpido
- Tudo que pode ser verdade.

Injusto
- Vantajoso pro outro lado.

Juventude
- O que acontece aos velhos quando em movimento.

Liberdade
- Direito de obedecer à polícia.

Objetivo
- Uma manifestação de loucura quando é compartilhada por vários lunáticos.

Pedante
- O sujeito que escreveu este livro.

Revolucionário
- Sujeito que serve à humanidade de uma maneira que ela não aprecia.

Sagrado
- Aquilo de que os arcebispos não duvidam.

Verdadeiro
- Tudo que é aceito pelos examinadores.

Virtude
- Submissão ao governo.

Xenofobia
- A certeza andorrana de que os andorranos estão com toda razão.

CRÔNICA:"Barata à Vista"

Autor:Millôr Fernandes


A barata é a mais lídima das aquisições democráticas do mundo. Quase toda a casa a possui. Aos pobres lhes cabe melhor quinhão desses insetos, muito embora o Sr. Guinle não possa se queixar pois o Copacabana também as tem apesar de todo o DDT. Pertencendo à família das BLATÍDEAS, muito conhecida nos buracos de rodapés, cantos de estantes, fundos de arquivos e de gavetas, as baratas têm hábitos próprios interessantíssimos com os quais me familiarizei nos meus longos anos de pertinaz contato com arcanos e alfarrábios.

Para se lidar com baratas há quem acredite em inseticidas e baraticidas. Como em tudo mais, acredito em psicologia. Para se aplicar a psicologia é preciso um certo método e uma vasta disciplina. Vejamos.

Encontra-se a barata. Para se encontrar uma barata não é preciso muito gasto de energia. Em geral ela nos procura. E mais em geral ainda ela vem ao meio de nossos dedos quando pegamos aquela pilha de livros que estava embaixo da escada. No momento em que sentimos a barata presa em nossos dedos um sentimento de horror inaudito corre nossa espinha. Largamos livros, agitamo-nos furiosamente, batemos no chão, nos móveis e nos livros com o primeiro pano ou jornal que se nos depara, mas, a essa altura, a barata já estará longe, escondida numa das 365 mil páginas dos 870 livros que espalhamos no chão. Como encontrá-la? eis o problema. Esse problema, depois de acalmados nossos nervos e esfregadas nossas mãos com sabão e bastante álcool, é que procuramos resolver.

Existe, para se pegar uma barata, dois processos distintos. Um é chamar a empregada e dizer: "Tem uma barata aí! Quero isso bem limpo!" e virar covardemente as costas. Dessa atitude pode resultar que a barata atinja um extraordinário grau de longevidade pois a empregada passará um pano nos livros e jogará por cima deles um pouco de DDT, dando-se por satisfeita. A barata também. E daqui há seis meses, quando você for pegar aquele velho exemplar de Balzac, terá a desagradável surpresa de ver, à página 276, olhando-o com aqueles olhos brejeiros e aquelas antenas irônicas que lhe são próprios, a mesma barata que você tinha condenado à morte. Vocês fitar-se-ão demoradamente. Ela continuará baloiçando as antenas. E você, depois de um segundo de inércia, saltará para o ar, jogará o livro para o outro lado e berrará femininamente. Pois eis que as baratas têm o extraordinário poder de nos afeminar a todos, afirmativa essa que se aceitará sem contestação se se atentar para o grande número de baratas que há em nossos teatros.

Portanto não se deve virar as costas a uma barata, como fazem os elementos da ribalta, mas sim enfrentá-la masculamente. Para isso precisamos, antes de mais nada, saber se a barata é uma BLATÍDEA comum ou se é uma PERIPLANETA AMERICANA, ou, em linguagem menos científica, uma dessas baratas que voam. Se é dessas aconselho o leitor a desistir de qualquer pretensão máscula, arrumar as malas, fechar as portas de sua casa e entrar para o Teatro.

Agora, se é das outras, sempre há recursos:

1 — Pegue um Correio da Manhã bem dobrado, deixando à mostra o artigo de fundo. Sacuda os livros e espere, trepado numa cadeira. Atente sobretudo para o estilo de bater quando a barata surgir. Lembre-se: o estilo é o homem.

2 — Quando a barata surgir bata de uma vez. Não durma na pontaria. Ela normalmente pára um pouquinho, para sondar o ambiente cá de fora e confrontá-lo com a literatura em que vive metida. esse o momento de atacar.

3 — Trate de verificar se o inseto em que você está batendo é uma barata ou um barato. Nunca se esqueça: o barato sai caro.

4 — Nunca aproxime e afaste o jornal para fazer pontaria. As baratas sabem muito bem o que as espera quando sentem esse ventinho, quando você bater de verdade ela já terá embarcado para a Europa.

5 — Não tenha pena de bater. Bata firme, forte, decididamente. É a vida dela ou a sua. Se você não a matar terá que passar a existência inteira alimentando-a a inseticida.

6 — Não se importe com as coisas que o cercam. Afinal de contas que são meia dúzia de copos partidos, um tapete manchado, dois livros com as páginas rasgadas e uma perna de cadeira quebrada se você conseguiu eliminar uma barata?

7 — Se falhar, só a paciência lhe dará outra oportunidade. A barata não lhe dará outra tão cedo, enquanto permanecer em sua memória o trauma da pancada que quase lhe tirava a vida. Não adianta você sacudir livro após livro porque se recusará a aparecer. Agarrar-se-á às páginas e, se cair ao chão, correrá rapidamente, escondendo-se por trás do guarda-roupa.

8 — Não se deixe levar pela vaidade. Às vezes você atinge uma barata de leve e ela vira-se de barriga para o ar agitando as perninhas ininterruptamente, com a expressão de quem está dando uma gargalhada, achando você engraçadíssimo. Isso poderá lisonjeá-lo mas não a poupe por esse motivo.

9 — Às vezes elas tentam outro truque sentimental. Atingidas de leve elas vão se arrastando tristemente, de vez em quando olhando para você com um olhar que 1he dilacera o coração, como quem diz: "Seu malvado, viu o que você fez?" Antes de começar a chorar bata até matar. Depois chore.

10 — De seis em seis meses faça um teste consigo próprio para ver se você está mais desbaratador do que no semestre anterior. Se a resposta for negativa não esmoreça. Continue lutando até que possa, como nós, cobrar caro pelas lições administradas. E essa é nossa última recomendação: cobre sempre caro pelos seus conselhos nesse setor. Não se barateie!

Millôr Fernandes, ao que parece, padece do mesmo horror a baratas que muitos de nós têm.

CRÔNICA:"Dez em Humor"

Autor:Millôr Fernandes

Ah, essa falsa cultura:


Rômulo foi alimentado por uma loba e ficou conhecido como o lobo do homem.

A Argentina é um país cor de laranja do lado esquerdo do Brasil.
Os incas eram tão adiantados que já tinham até a circulação do sangue.
Os judeus foram perseguidos porque se entregavam a uma vida inteiramente semítica.
Eqüidistância é você estar à mesma distância de todos os lugares ao mesmo tempo.
O lugar mais quente da terra é perto do Cuador.
A inoculação é um ato sexual entre os micróbios.

DICIONOVÁRIO (palavras que precisam ser inventadas):


REALÇÃO -
Oposição ao monarca.

BARCILO - Bactéria encontrada no bar.
CÔNEGRO - Eclesiástico de cor.
TATATATATATARAVÔ - O antepassado do gago.
INAUGORAÇÃO - Estréia que não houve.
VILTÓRIA - Vencer uma luta mesquinha.
SERVANTE - Servente com mania de ler o Dom Quixote.
CEDOÇÃO - Atrair sensualmente às primeiras horas do dia.
BOICEJO - Demonstração de tédio por parte do marido de dona vaca.
CENSOALIDADE - Estatística da volúpia.

CRÔNICA:"Lope-Lopes"

Autor:Millôr Fernandes


  • A pedra que no papel nem serve para desenhar uma reta, dentro d'água faz círculos perfeitos.
  • Porque a mulher fica nua lhe damos um casaco de peles.
  • Sonhou que dizia: "Você é a moça dos meus sonhos".
  • O importante não é o relógio — são as horas.
  • Há gêmeos tão parecidos que o que não nos conhece nos cumprimenta.
  • Não era mulher, era um modelo vivo.
  • O menino nasceu preto apesar de todo o esforço dos médicos. 
  • O sacerdote deu uma topada e fez um silencio cheio de heresias.
  • Quando apertamos a campainha vem-nos sempre um certo receio de que a casa vá para os ares. 
  • Quando a igreja muda de padre parece que este fala de um Deus novo. 
  • A lavadeira põe o ferro em cima da roupa e o tempo passa. 
  • De cem em cem mil anos o infinito faz um ano.
  • Pegamos o telefone que o menino fez com duas caixinhas de papelão e pedimos uma ligação para a infância.
  • Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer.
  • E dito e feito, tudo foi dito e nada foi feito.
  • O ator encarna o papel, mas em compensação o açougueiro empapela as carnes.
  • Há certos indivíduos que, por terem que botar no correio uma carta urgente, ficam apressadíssimos.
  • Atravessou a sala com aquele ar orgulhoso dos belos transatlânticos. 
  • Quem não tem lenço se despede menos.
  • Quem mata o tempo não é um assassino.  É um suicida. 
  • A mulher do vizinho é sempre mais magra do que a nossa. 
  • Não aceitou o emprego de motorista de ônibus porque detestava coisas passageiras.
  • O morcego é o anjo do rato.
  • No espelho fazemos caretas para ver se somos bonitos.
  • Ter mais de vinte anos sempre nos pareceu uma injustiça.

CRÔNICA:"O Carioca É. Antes de Tudo".


Autor:Millôr Fernandes


Os paulistanos (!) que me perdoem, mas ser carioca é essencial. Os derrotistas que me desculpem, mas o carioca taí mesmo pra ficar e seu jeito não mudou. Continua livre por mais que o prendam, buscando uma comunicação humana por mais que o agridam, aceitando o pão que o diabo amassou como se fosse o leite da bondade humana. O carioca, todos sabem, é um cara nascido dois terços no Rio e outro terço em Minas, Ceará, Bahia, e São Paulo, sem falar em todos os outros Estados, sobretudo o maior deles o estado de espírito. Tira de letra, o carioca, no futebol como na vida. Não é um conformista -- mas sabe que a vida é aqui e agora e que tristezas não pagam dívidas. Sem fundamental violência, a violência nele é tão rara que a expressão "botei pra quebrar" significa exatamente o contrário, que não botou pra quebrar coisa nenhuma, mas apenas "rasgou a fantasia", conseguiu uma profunda e alegre comunicação -- numa festa, numa reunião, num bate-coxa, num ato de amor ou de paixão -- e se divertiu às pampas. Sem falar que sua diversão é definitivamente coletiva, ligada à dos outros. Pois, ou está na rua, que é de todos, ou no recesso do lar, que, no Rio é sempre, em qualquer classe social, uma open-house, aberta sob o signo humanístico do "pode vir que a casa é sua".

Carioca, é. Moreno e de 1,70 metro de altura na minha geração, com muitos louros de 1,80 metro importados da Escandinávia na geração atual, o carioca pensa que não trabalha. Virador por natureza, janota por defesa psicológica, autocrítico e autogozador não poupando, naturalmente, os amigos e a mãe dos amigos -- ele vai correndo à praia no tempo do almoço apenas pra livrar a cara da vergonhosa pecha de trabalhador incansável. E nisso se opõe frontalmente ao "paulista", que, se tiver que ir à praia nos dias da semana,vai escondido pra ninguém pensar que ele é um vagabundo.

Amante de sua cidade, patriota do seu bairro, o carioca vai de som (na música), vai de olho (é um paquerador incansável e tem um pescoço que gira 360 graus), vai de olfato (o odor é de suprema importância na fisiologia sexual do carioca).

Sem falar, que, em tudo, vai de espírito; digam o que disserem, o papo, invenção carioca, ainda é o melhor do Brasil, incorporando as tendências básicas do discurso nacional: o humanismo mineiro, o pragmatismo paulista, a verborragia baiana.

E basta ouvir pra ver que o nervo de todas as conversas cariocas, a do bar sofisticado como a do botequim pobre e sujo, por isso mesmo sofisticadíssimo, a do living-room granfa, a da cama (antes e depois), é o humor, a crítica, a piada, a graça, o descontraimento. Não há deuses e nada é sagrado no Olimpo da sacanagem. O carioca é, antes de tudo, e acima de tudo, um lúdico. Ainda mais forte e mais otimista do que o homem da anedota clássica que, atravessado de lado a lado por um punhal, dizia: "Só dói quando eu rio", o carioca, envenenado pela poluição, neurotizado pelo tráfego, martirizado pela burocracia, esmagado pela economia, vai levando, defendido pela couraça verbal do seu humor.

Só dói quando ele não ri.

Só dói quando ele não bate papo.

Só dói quando ele não joga no bicho.

Só dói quando ele não vai ao Maracanã.

Só dói quando ele não samba.

Só dói quando ele esquece toda essa folclorada acima, que lhe foi impingida anos a fio com o objetivo de torná-lo objeto de turismo, e enfrenta a dura realidade... carioca.


CRÔNICA:"O Rei dos Animais"

Autor:Millôr Fernandes


Saiu o leão a fazer sua pesquisa estatística, para verificar se ainda era o Rei das Selvas. Os tempos tinham mudado muito, as condições do progresso alterado a psicologia e os métodos de combate das feras, as relações de respeito entre os animais já não eram as mesmas, de modo que seria bom indagar. Não que restasse ao Leão qualquer dúvida quanto à sua realeza. Mas assegurar-se é uma das constantes do espírito humano, e, por extensão, do espírito animal. Ouvir da boca dos outros a consagração do nosso valor, saber o sabido, quando ele nos é favorável, eis um prazer dos deuses. Assim o Leão encontrou o Macaco e perguntou: "Hei, você aí, macaco - quem é o rei dos animais?" O Macaco, surpreendido pelo rugir indagatório, deu um salto de pavor e, quando respondeu, já estava no mais alto galho da mais alta árvore da floresta: "Claro que é você, Leão, claro que é você!".

     Satisfeito, o Leão continuou pela floresta e perguntou ao papagaio: "Currupaco, papagaio. Quem é, segundo seu conceito, o Senhor da Floresta, não é o Leão?" E como aos papagaios não é dado o dom de improvisar, mas apenas o de repetir, lá repetiu o papagaio: "Currupaco... não é o Leão? Não é o Leão? Currupaco, não é o Leão?".

     Cheio de si, prosseguiu o Leão pela floresta em busca de novas afirmações de sua personalidade. Encontrou a coruja e perguntou: "Coruja, não sou eu o maioral da mata?" "Sim, és tu", disse a coruja. Mas disse de sábia, não de crente. E lá se foi o Leão, mais firme no passo, mais alto de cabeça. Encontrou o tigre. "Tigre, - disse em voz de estentor -eu sou o rei da floresta. Certo?" O tigre rugiu, hesitou, tentou não responder, mas sentiu o barulho do olhar do Leão fixo em si, e disse, rugindo contrafeito: "Sim". E rugiu ainda mais mal humorado e já arrependido, quando o leão se afastou.

     Três quilômetros adiante, numa grande clareira, o Leão encontrou o elefante. Perguntou: "Elefante, quem manda na floresta, quem é Rei, Imperador, Presidente da República, dono e senhor de árvores e de seres, dentro da mata?" O elefante pegou-o pela tromba, deu três voltas com ele pelo ar, atirou-o contra o tronco de uma árvore e desapareceu floresta adentro. O Leão caiu no chão, tonto e ensangüentado, levantou-se lambendo uma das patas, e murmurou: "Que diabo, só porque não sabia a resposta não era preciso ficar tão zangado".

CRÔNICA:"Exageros de Mãe"

Autor:Millôr Fernandes

Já te disse mais de mil vezes que não quero ver você descalço. Nunca vi uma criança tão suja em toda a minha vida. Quando teu pai chegar você vai morrer de tanto apanhar. Oh, meu Deus do céu, esse menino me deixa completamente maluca. Estou aqui há mais de um século esperando e o senhor não vem tomar banho. Se você fizer isso outra vez nunca mais me sai de casa. Pois é, não come nada: é por isso que está aí com o esqueleto à mostra. Se te pegar outra vez mexendo no açucareiro, te corto a mão. Oh, meu Deus, eu sou a mulher mais infeliz do mundo. Não chora desse jeito que você vai acordar o prédio inteiro. Você pensa que seu pai só trabalha pra você chupar Chica-Bon? Mas, furou de novo o sapato: você acha que seu pai é dono de sapataria, pra lhe dar um sapato novo todo dia? Onde é que você se sujou dessa maneira: acabei de lhe botar essa roupa não faz cinco minutos! Passei a noite toda acordada com o choro dele. Eu juro que um dia eu largo isso tudo e nunca ninguém mais me vê. Não se passa um dia que eu não tenha que dizer a mesma coisa. Não quero mais ver você brincando com esses moleques, esta é a última vez que estou lhe avisando.

CRÔNICA:"E o seu nível de corrupção, como vai?".

Autor:Millôr Fernandes


Dizem por ai que todo homem tem seu preço. Há quem vá mais longe afirmando que alguns homens são vendidos a preço de banana. Sempre esperei, na vida, o dia da Grande Corrupção, e confesso, decepcionado, que ele nunca veio. A mim só me oferecem causas meritórias, oportunidades de sacrifício, salvações da Pátria ou pura e frontalmente a hedionda tarefa de lutar.. . contra a corrupção. Enquanto eu procuro desesperadamente uma oportunidade, as pessoas e entidades agem comigo de tal forma que às vezes chego a duvidar de que a corrupção exista. Mas, falar em corrupção, como anda a sua? Vendendo saúde ou combalida e atrofiada como a minha? Responda com muito cuidado às perguntas abaixo e depois conclua sobre sua própria personalidade: você é um corrupto total ou um idiota completo? (Não há meio-termo.) Conte 10 pontos para cada resposta certa (você é quem decide qual é a certa) e verifique depois o grau de sua corruptibilidade. Nota: Se você roubar neste teste, é porque sua corrupção é mesmo absolutamente incorruptível.

A) Você descobre que o chefe do seu departamento está com um caso complicado com a secretária do outro chefe em frente. Você: 1) Finge que não viu nada. 2) Diz à secretária que ou também está, nessa ou vai botar a boca no mundo. 3) Oferece o seu sítio ao chefe pra ele passar o fim de semana. 4) Bota a boca no mundo. 5) Insinua ao chefe que há a perigosa hipótese de a mulher dele vir a saber (e enquanto isso põe a promoção embaixo do nariz dele pra ele assinar).

B) Você acha que a Lei e a Ordem é uma mística social maravilhosa para: 1) Impor a lei e a ordem. 2) Acabar com a grita dos descontentes. 3) Grandes oportunidades de ganhar algum por fora. 4) Dividir o bolo entre os íntimos sem ninguém de fora piar.

C) A primeira vez em que você ouviu falar do escândalo de Watergate você disse: 1) Isso é que é país! 2) Como é que o governo americano permite uma imprensa dessas? Isso desmoraliza um país! 3) Eu não compraria um carro usado desse Nixon. 4) Isso jamais aconteceria entre nós. 5) Quanto terão levado esses caras pra se arriscarem dessa maneira?

D) Você, como representante oficial da fiscalização, comparece à apresentação de contas, em dinheiro, no Instituto dos Cegos. Fica surpreendido com o alto volume das arrecadações e em certo momento: 1 ) Diz : "Estou surpreendido com a miserabilidade dos donativos". E tenta enrustir algum. 2) Diz: "Como representante do fisco sou obrigado a reter 30 % de tudo porque esta arrecadação é totalmente ilegal". 3) Diz: "Teria sido até uma boa arrecadação se metade das notas não fossem falsas". 4) Disfarça bem a voz e diz, entredentes: "Todos quietinhos aí, seus Homeros de uma figa: Isto é um assalto!"

E) Você se demite do cargo de maneira irrevogável por insuportáveis pressões morais e absoluta impossibilidade de compactuar com a presente política da firma. Eles prometem triplicar o seu salário. Você: 1) Recusa, indignado, por pensarem que é tudo uma questão de dinheiro. Só ficará se eles derem também as três viagens anuais à Europa a que todos os diretores têm direito. E participação nos lucros retidos da companhia. 2) Diz que, evidentemente, isso e uma prova moral de que eles estão de acordo com você. O dinheiro, aí é definitivo como demonstração de confiança na sua gestão. 3) Pede para pensar 5 minutos antes de dar a resposta. 4) Explica que tem mulher e filhos e não pode manter um pedido de demissão feito, afinal de contas, por motivos tão irrelevantes.

F) Há uma diferença fundamental entre fraudar e evitar o imposto de renda. Quando você descobriu isso, você: 1) Ficou indignado com as possibilidades de os poderosos usarem tudo a seu favor. Como é que se pode escamotear um ordenado? 2) Começou a estudar furiosamente a legislação para descobrir todos os furos. 3) Tinha 11 anos de idade e estava terminando o curso primário. 4) Nunca mais pagou um tostão de imposto.

G) Você dá um nota de 10 pra pagar o jornal, no jornaleiro velhinho da banca da esquina, e percebe que ele lhe deu 50 como troco. Você imediatamente: 1) Corrige o erro do velhinho? 2) Reclama chateado aproveitando a gagaíce do vendedor: "Pô, eu lhe dei uma nota de 100?" 3) Chega em casa e manda todos os seus filhos comprarem vários jornais? 4) Bota o dinheiro no bolso e fica freguês?

H) Você teve que fazer um trabalho na rua, não pôde almoçar, comeu um sanduíche. Você apresenta a conta na companhia: 1) Um sanduíche — 3 cruzeiros. 2) Almoço — 32 cruzeiros. 3) Almoço com o representante da A&F Ltda. — 79 cruzeiros. 4) Despesas gerais — 143 cruzeiros.

I) Quando o desfalque dado pelo auditor geral (8.000.000 pratas) chega a seus ouvidos você murmura: 1) "Idiota, se deixar apanhar assim". 2) "Será que eles vão descobrir também os meus 10.000?". 3) "Se ele tivesse me dado 10% eu tinha feito o negócio de maneira que ninguém nunca ia descobrir". 4) "Eu fiz bem em não entrar no negócio".
Conselho de amigo:
Quando alguém, na rua, gritar "Pega ladrão!", finge que não é com você.

CRÔNICA:"Prevenção contra assaltos"

Autor:Millôr Fernandes

Como os assaltos crescem dia-a-dia, não podendo contê-los, a PM, sabiamente, dá conselhos aos cidadãos para serem menos assaltados:


1) Não demonstre que carrega muito dinheiro.


2) Jamais deixe objetos à vista, dentro do carro.


3) Levante todos os vidros, mesmo em movimento.


4) Não deixe documentos no veículo.


5) Na volta, ao se aproximar do carro, verifique se não há alguém suspeito por perto.


6) Não leve objetos de valor nem muito dinheiro para a praia.


7) Se, ao ir à praia, for de carro, coloque o veículo num ponto em que fique ao alcance de sua vista.


8) À noite, em locais escuros, use faróis altos.


9) Não dirija com o braço fora do carro.


10) Ao chegar em casa e antes de descer para abrir o portão, ou esperar por isso, verifique se não há pessoas suspeitas por perto.


11) À noite não se deixe aproximar por veículos com mais de dois homens.


12) Se assaltado, fique calmo. Não faça movimentos bruscos e evite encarar os assaltantes. Não discuta nem reaja.


13) Evite aglomerações. Nos locais em que todos se acotovelam os punguistas agem.

Depois de ler com extrema atenção estas instruções oficiais, acrescento as minhas, ou melhor, resumo:
1) Não saia de casa.



2) Se possível, não saia do quarto.


3) De preferência, não saia do cofre.



terça-feira, 23 de novembro de 2010

BIOGRAFIA: ANTÔNIO MARIA


"Às vezes, me sinto muito só. Sem ontem e sem amanhã. Não adianta que haja pessoas em volta de mim. Mesmo as mais queridas. Só se está só ou acompanhado, dentro de si mesmo. Estou muito só hoje. Duas ou três lembranças que me fizeram companhia, desde segunda-feira, eu já gastei. Não creio que, amanhã, aconteça  alguma coisa de melhor."
(O diário de Antônio Maria)

Antônio Maria
Araújo de Morais nasceu no Recife, em 17 de março de 1921.Seu primeiro emprego, aos 17 anos, foi o de apresentador de programas musicais na Rádio Clube Pernambuco. Em 1940, mês de março, vem para o Rio a bordo do Ita "Almirante Jaceguai", "com quatro roupas novas e cinco contos no bolso", para ser locutor esportivo na Rádio Ipanema. A cidade tinha 1.764.411 habitantes. Foi direto do Ita para o apartamento 1.005 do edifício Souza, na Cinelândia, onde passou a morar ao lado de Fernando Lobo e Abelardo Barbosa, o futuro rei dos auditórios Chacrinha, também pernambucanos. Também vivia por lá Dorival  Caymmi e o pintor Augusto Rodrigues. Ficou pouco tempo por aqui — 10 meses — sem ser notado. Passou fome, foi humilhado e preso. Retornou ao Recife e se casou, em maio de 1944, com Maria Gonçalves Ferreira.
Volta ao Rio de Janeiro, em 1947, já com dois filhos, Rita e Antônio Maria Filho, como diretor artístico da Rádio Tupi. Convocado por Assis Chateaubriand foi o primeiro diretor de produção da TV Tupi, inaugurada em 20 de janeiro de 1951, tendo trabalhado também como cronista de O Jornal. Durante mais de 15 anos escreveu crônicas diárias. Assinou, até 1955, as colunas "A noite é grande" e "O Jornal de Antônio Maria", nesse diário. No jornal O Globo manteve, por pouco tempo (início de 1959), a coluna "Mesa de Pista", tendo então se transferido para a Última Hora. Ali voltou a assinar "O Jornal de Antônio Maria" e "Romance Policial de Copacabana", esta última com crônicas e reportagens.

A rádio Mayrink Veiga partiu para o ataque contra a Tupi e passou a contratar seus grandes nomes. Antônio Maria foi um dos primeiros contratados, por 50 mil  cruzeiros, o mais alto salário do rádio no Brasil. Logo comprou seu primeiro Cadillac, símbolo de status entre os reis do rádio naquela época.

Na televisão era famoso o programa "Preto no Branco", de Oswaldo Sargentelli, onde sempre aparecia uma "pergunta de Antônio Maria, da produção do programa", geralmente muito embaraçosa. 


Mesmo sendo uma pessoa extrovertida e de muitos amigos (e inimigos), Maria, como era chamado por eles, sempre teve a solidão dentro de si. Um exemplo está em sua crônica "Oração".
Em outra oportunidade, ele e Vinícius de Morais, também seu grande amigo, tentavam cumprir um compromisso assumido: fazer um jingle para o lançamento de um... regulador feminino. Estavam com inúmeros outros trabalhos e foram pedir ajuda a Aracy. Ela, sem pensar muito, tomando emprestada a melodia de O orvalho vem caindo, de Noel, atacou de pronto: "— O ovário vem caindo...". Carlos Heitor Cony dizia que se o autor fosse mandado para cobrir a posse do papa, voltaria cardeal.

Cony conta: "Um dia, Maria me telefona: — Carlos Heitor, Carlos Heitor, você nunca me enganou." Disse então que, vindo de São Paulo, viu no avião uma mulher linda lendo o livro Matéria de Memórias, de Cony. Aproximou-se, se apresentou como o autor do livro, e a mulher, uma típica apaixonada, acreditou. Pintou para ela um quadro bastante dramático: era um desgraçado, que nunca tinha tido sucesso, que as mulheres o abandonavam. "— Mas, Maria..." era tudo o que o espantado Cony conseguia dizer. "— Fica tranqüilo, Cony, fica tranqüilo porque em seguida nós fomos pra cama. Ou melhor, você foi pra cama." E Cony, curioso: "— E ai?"  "— E aí foi que aconteceu o problema" — gargalhava Maria. "— E ai você broxou, Cony, você broxou!"
Autor de jingles comerciais acabou compondo letra para duas gravações na voz de Nora Ney que se transformam em grande sucesso na programação das rádios brasileiras: Menino Grande e Ninguém me ama. Essas músicas são, até hoje, lembradas por diversas gerações, sempre com muita emoção. Compôs, também, outros grandes sucessos, dentre os quais podemos destacar Valsa de uma cidade e Canção da Volta, com Ismael Neto; Manhã de Carnaval e Samba do Orfeu, com Luís Bonfá, em 1959; O Amor e a Rosa e As Suas mãos, com Pernambuco, e Se eu Morresse Amanhã. De sua grande produção musical, apenas 62 foram gravadas. Eram, em sua maioria, tristes, de dor-de-cotovelo.
Antônio Maria, cardiopata desde a infância, faleceu fulminado por um enfarte do miocárdio na madrugada de 15 de outubro de 1964, em Copacabana, quando se dirigia para o Le Rond Point; mesmo tendo sido socorrido por amigos que o viram cair e que se encontravam na boate O Cangaceiro, em frente daquele restaurante. Bom de copo e de garfo, Maria se auto-intitulava "cardisplicente", uma mistura de cardíaco com displicente. Profissão: Esperança.

CRÔNICA:"Mulher dos outros"

                                                           Autor:Antônio Maria

Dia claro. Primeiras horas do dia claro. Havíamos bebido e procurávamos um café aberto, para uma média, com pão-canoa. Quase todos estavam fechados ou não tinham ainda leite ou pão. Fomos parar em Ipanema, num cafezinho, cujo dono era um português e nos conhecia de nome de notícia. Propôs-nos, em vez de café, um vinho maduro, que recebera de sua terra, "uma terrinha (como disse) ao pé de Braga". Não se recusa um vinho maduro, sejam quais forem as circunstâncias. Aceitamo-lo. Nossa grata homenagem a José Manuel Pereira, que nos deu seu vinho.

Nesse café, além de nós, havia um casal, aos beijos. As garrafas vazias (de cerveja) eram quatro sobre a mesa e seis sob. Beijavam-se, bebiam sua cervejinha e voltavam a beijar-se. Não olhavam para nós e pouco estavam ligando para o resto do mundo. Em dado momento, entraram dois rapazes e pediram aguardente no balcão. Ambos disseram palavrões, em voz alta. O casal dos beijos e da cerveja parou com as duas coisas. Outros palavrões e o cabeça do casal protestou:

— Pára com isso, que tem mulher de respeito aqui!

Um dos rapazes dos palavrões:

— Não chateia!

— Não chateia o quê? Pára com isso agora!

Um dos rapazes do palavrão:

— E essa mulher é tua mulher?

— Não é, mas é mulher de um amigo meu!

A briga não foi adiante. Todos rimos. O dono da casa, os rapazes dos palavrões, o casal. Está provado que: quem sai aos beijos com mulher de amigo não tem direito a reclamar coisa alguma.

CRÔNICA:"O andar"

Autor:Antônio Maria

Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara. Uma jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem, encostado a um poste:

— Prenda este homem, que ele está se portando inconvenientemente.

Era um homem magro, pálido, vestido em casimira velhinha. Não tinha cara de gente má. Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos.

O policial segurou o homem pela lapela. O homem não se mexeu. Apenas levantou os olhos e perguntou:

- Por quê?

A senhora estava uma fúria e dizia num fôlego só:

— Há uma hora este cidadão me segue. Começou no lotação. Desceu quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou também. Andei um quarteirão e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele entrou também...

— E lhe disse alguma coisa?

— Não. Só olhava.

O guarda soltou a lapela do homem. O homem agradeceu. O guarda dirigiu-se ainda à mulher:

— Mas ele só olhava?

— Sim. Mas olhava de maneira obscena.

O guarda perguntou, então, ao homem:

— Você olhava de maneira obscena?

— Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um no meu lugar faria o mesmo. 0 senhor já viu ela andar?

0 guarda viu depois, quando a mulher desistiu da prisão do seu espectador e foi andando. Não se deve explicar muito, mas é preciso que se diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato brasileiro, com movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos automóveis, uma tabuleta às costas, onde se lesse: "Amaciando".

CRÔNICA:"Uma velhinha"

Autor:Antônio Maria

Quem me dera um pouco de poesia, esta manhã, de simplicidade, ao menos para descrever a velhinha do Westfália! É uma velhinha dos seus setenta anos, que chega todos os dias ao Westfália (dez e meia, onze horas), e tudo daquele momento em diante começa a girar em torno dela. Tudo é para ela. Quem nunca antes a viu, chama o garçom e pergunta quem ela é. Saberá, então, que se trata de uma velhinha "de muito valor", professora de inglês, francês e alemão, mas "uma grande criadora de casos".

Não é preciso perguntar de que espécie de casos, porque, um minuto depois, já a velhinha abre sua mala de James Bond, de onde retira, para começar, um copo de prata, em seguida, um guardanapo, com o qual começa a limpar o copo de prata, meticulosamente, por dentro e por fora. Volta à mala e sai lá de dentro com uma faca, um garfo e uma colher, também de prata. Por último o prato, a única peça que não é de prata. Enquanto asseia as "armas" com que vai comer, chama o garçom e manda que leve os talheres e a louça da casa. Um gesto soberbo de repulsa.

O garçom (brasileiro) tenta dizer alguma coisa amável, mas ela repele, por considerar (tinha razão) a pronúncia defeituosa. E diz, em francês, que é uma pena aquele homem tentar dizer todo dia a mesma coisa e nunca acertar. Olha-nos e sorri, absolutamente certa de que seu espetáculo está agradando. Pede um filet e recomenda que seja mais bem do que malpassado. Recomenda pressa, enquanto bebe dois copos de água mineral. Vem o filet e ela, num resmungo, manda voltar, porque está cru. Vai o filet, volta o filet e ela o devolve mais uma vez alegando que está assado de mais. Vem um novo filet e ela resolve aceitar, mas, antes, faz com os ombros um protesto de resignação.

Pela descrição, vocês irão supor que essa velhinha é insuportável. Uma chata. Mas não. É um encanto. Podia ser avó da Grace Kelly. Uma mulher que luta o tempo inteiro pelos seus gostos. Não negocia sua comodidade, seu conforto. Não confia nas louças e nos talheres daquele restaurante de aparência limpíssima. Paciência, traz de sua casa, lavados por ela, a louça, os talheres e o copo de prata. Um dia o garçom lhe dirá um palavrão? Não acredito. A velhinha tão bela e frágil por fora, magrinha como ela é, se a gente abrir, vai ver tem um homem dentro. Um homem solitário, que sabe o que quer e não cede "isso" de sua magnífica solidão.

CRÔNICA:"Romance dos pequenos anúncios"

Autor:Antônio Maria

Dinheiro — Preciso 35 mil
cruzeiros empréstimo,
boas referencias.
Pago no vencimento
50 mil 30 dias.

— Mas, a gente vai separar por quê? — perguntou o marido. A conversa começou cerca da meia-noite, e eram oito da manhã. Marilda só dizia que ia separar e que não ficava mais nem um dia. Na hora de explicar o motivo, se trancava. A pergunta "você tem um novo alguém", Jaribe lhe fizera umas mil vezes. Marilda se arrepiava da cabeça aos pés, com a forma "um novo alguém". Foi quando Jaribe levantou, foi no armário e, de urna malinha da Varig, trouxe um Smith Wesson 38, carga dupla.

— Fala, Marilda. Se não falar eu me mato aqui mesmo.

Marilda não sabia daquele revólver. Nunca vira, antes, alguém com um revólver na mão. Sentiu uma náusea. A violência, qualquer espécie de violência, lhe nauseava. Pediu:

— Guarde o revólver que eu falo.

Jaribe atirou o revólver, de qualquer maneira, no armário.

— Vai, fala.

Marilda ergueu metade do corpo e recostou no espaldar da cama. Tinha que falar. Um homem nunca se conforma em separar-se sem ouvir, bem direitinho, no mínimo 500 vezes, que a mulher não gosta mais dele, por que e por causa de quem. Já mulher, não (pensava). Basta que o homem lhe diga uma vez que quer ir embora, nasce-lhe um brio, um ódio poderoso, uma espécie de soberba, tão grande, que ela se veste toda, pega um telefone, pede um táxi e sai. Mulher (pensara Marilda, a noite inteira) pode não ter muita vergonha nos outros lugares. Mas, na cara, tem. Mulher não se importa de vestir o menor dos biquínis e deixar que a vejam, horas. Mas não consente que o homem que a despreza lhe olhe a cara, um só minuto.

Mas tinha que falar, porque homem, enquanto não sabe do pior, não sossega. E começou, Marilda, sem um segundo de sono (seis "dexas"), recostada no espaldar.

— Escuta, bem. Você sabe que eu tenho minhas coisas, não sabe? Fala. Sabe ou não sabe?

— Mas conta.

— Você vai dizer que eu sou louca, se eu disser que, no terceiro mês de casada, não agüentava ouvir ou dizer seu nome. Nós estamos casados há dois anos e três meses, não é? Pois bem, qual foi a última vez que você me ouviu chamar você pelo nome?

Jaribe fez uma rápida busca no tempo e só lembrou de Marilda a chamá-lo de "meu bem". Ou, então, quando não havia ninguém perto, falar assim: "hei"!... e dizer o que queria.

Marilda continuava:

— Tentei o seu sobrenome. Você se lembra que, de junho a agosto do ano passado, eu passei chamando você de Carvalho? Mas não podia continuar. Mulher chamar marido pelo sobrenome é humilhante demais.

— Mas meu nome é tirado da Bíblia — ... apelou Jaribe.

Marilda continuou:

— Mas não é só isto. Você fala umas coisas que não há mulher que agüente.

Houve uma pausa, que Jaribe se apressou em quebrar:

— Por exemplo?

Marilda preferia não dizer. Ajeitou-se no espaldar da cama, puxando o lençol acima dos seios, pois naquela posição a camisola não estava dando conta. Mulher não diz nada sério, não assume mesmo a mínima dignidade, se houver qualquer de suas pudícias à mostra. Marilda puxou o lençol até o pescoço.

— Eu estou esperando — insistiu Jaribe.

E Marilda falou o resto:

— Outra coisa: você fala "menas".

— Como assim?

— Você diz muito: "menas gente".

Jaribe a amava como um louco. Sentia, por dentro, uma dor enorme. Aquela dor da falta de ginásio. Mas queria saber tudo:

— E você tem um novo alguém?

Marilda botou o rosto dentro das mãos e começou a chorar. Chorava e falava, ao mesmo tempo:

— Me manda embora! Me manda um mês para fora pra ver se a gente conserta! Deixa eu ficar dois meses no Paraná com a família da minha madrasta! Vai, arranja um dinheiro e me manda! Depois a gente acerta.

Jaribe o que queria era esperança. Como todo homem que sente perder a mulher, queria a esperança de ainda retê-la. Tivesse ou não "um novo alguém", ele queria Marilda. Honra? O que é honra? Em que parte do corpo está localizada?

Com a lucidez dos enganados, Jaribe descobria todas as verdades da vida.

Pobre Jaribe! Iria arranjar o dinheiro, custasse o que custasse. Com uns 35 mil cruzeiros, solucionaria o problema. Qualquer agiota lhe emprestaria 35 por cinqüenta, em trinta dias. Qualquer um. O próprio contador da Importadora. Se falhasse, era só botar um anúncio no Jornal do Brasil. Naquela efusão de suas esperanças, pensou: "Por que será que a Condessa comprou a Tribuna?". Pôs-se de pé.

— Olha, Marilda. Você vai para o Paraná, sim. Depois de amanhã. Fica lá, descansa, passa o tempo que quiser e depois volta.

— Faz uma coisa — pediu Marilda —. Você me escreve, tá?

— Claro. Você vai para descansar.

E Jaribe foi para o banheiro, alentado por todos os maus alentos. Vigiar-se-ia dali por diante quando falasse.

Precisava de Marilda. Retê-la-ia, custasse o que custasse. E, coitado, em tudo o que pensava, não estava mais que estruturando sobre o absurdo.