sábado, 22 de janeiro de 2011

CRÔNICA:"O Espelho"


Autor:José J. Veiga

Quando uma casa desmorona por velhice mais abandono, parece que alguma coisa da essência das pessoas que viveram nela e foram felizes — pelo menos por algum tempo ou alternadamente, já que ninguém é feliz sempre — fica pairando sobre os escombros e sobre utensílios abandonados ou esquecidos pela última família que morou nela; tanto que o poeta Pessoa escreveu num poema: "O que eu sou hoje é terem vendido a casa \ e terem morrido todos \ Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez...”. Aquela casa deve ter sido vendida várias vezes, depois envelheceu e por fim caiu.


O entulho ficou lá enfeando a rua e servindo de abrigo a mendigos e outros desses que têm a mania de pensar que são rebeldes, contestadores, não querem trato com o que chamam de sistema, mas não levam esse pensamento às últimas conseqüências: não abrem mão de um bom churrasco de gato nem do ato mais visceral de descarregar seus detritos quando se sentem pesados por dentro. Em todo caso, uma vez aliviados lembram-se de que fizeram uma concessão aos costumes e pensam que se redimem deixando de se limpar. Cada qual com a sua filosofia, como disse o general de granadeiros Contumácio Coribantes, vencedor da Batalha de Filigranas, que, como se sabe, mudou o rumo da história dos países do lado de baixo do Equador.


Então o entulho do desabamento ficou lá poluindo a rua e atraindo moscas, lagartixas, ratos, baratas e outros entes obnóxios, até que saqueadores tomaram conhecimento e começaram seu trabalho sistemático de extrair e carregar tudo em que vissem algum valor. Durante dias, talvez semanas, caminhões, kombis e até burros-sem-rabo, que ainda existem para quem sabe onde achá-los, transportaram ladrilhos, azulejos, grades, pias, torneiras, painéis de vidraças milagrosamente inteiros, portas, portais, caixilhos e esquadrias de janelas, fechaduras antigas ainda perfeitas, algumas sem as chaves; dois ou três armários enormes de madeira maciça para guardar louça ou roupa de cama e mesa e que os últimos moradores não quiseram carregar, certamente devido ao tamanho e ao peso. Esses foram desmontados a duras penas e transportados em um caminhão novo com placa de Vassouras, RJ, que alguém anotou por curiosidade.


Havia também um guarda-roupa, esse não tão antigo nem de boa madeira, tanto que não resistiu ao esborôo da casa, ficou todo quebrado e desconjuntado e não interessou a nenhum dos primeiros predadores. Mas quando chegou o segundo escalão, o chamado pente-fino, formado pelos que se contentam com sobras e rebotalhos, alguém deu uma olhada no guarda-roupa arrebentado, talvez esperando ou desejando que em alguma das muitas gavetas, quem sabe, tivesse ficado algum objeto de valor, ou mesmo dinheiro, é impressionante que existe de gente distraída no mundo, e muitas vezes o prejuízo de um distraído acaba sendo o lucro de um porfioso.


Dada a vista nas gavetas, quase todas ocadas por cupins, e nada encontrando, a pessoa notou que uma porta estava inteira e sã e poderia ser aproveitada, há sempre colocação para uma boa peça de madeira já curtida pelo tempo e vacinada contra cupins, podia servir para tampo de mesa, para um banco, para prateleiras de estante, era só esperar o encontro dela com quem a estivesse procurando, se esses encontros nunca acontecessem não haveria necessidade de belchiores, que sempre existiram e sempre existirão.


Depois de muito esforço, solavancos e engenho porque o puxador, também de madeira, estava quebrado e não dava pega, o pente-fino conseguiu abrir a porta — e teve nova surpresa. Do lado de dentro havia um espelho biselado de metro e meio de altura por sessenta e cinco centímetros de largura em perfeitíssimo estado, só que por cima da grossa camada de poeira podia se escrever nele com um dedo uma frase completa, como "Todo governo é delinqüente".


Razoável conhecedor de coisas antigas, o vasculhador de ruínas imaginou ou percebeu que o espelho tinha sido reaproveitado naquele armário: a moldura era diferente da madeira da porta, indicando que o espelho devia ter estado numa parede, talvez num salão, acima de um bufê ou de um sofá; ou num quarto de vestir, ou em uma loja de roupa ou calçado. E era importado, provavelmente da França, cujos artesãos inventaram esse tipo de corte chanfrado para evitar arestas nas margens de placas de vidro ou de madeira.


Mas — e o aço? Estaria ainda bom depois de tanta vivência e de tantos sacolejos?


Como saber, com tanta poeira encrostada em cima? Olhou em volta, viu umas folhas de jornal jogadas nas ruínas pelo vento. Pegou duas folhas, fez uma pelota, experimentou. A seco não adiantava, apenas espalhava a poeira. Só molhando o papel, mas onde achar água? O homem tinha expediente, não ia empacar por tão pouco. Procurou um lugar protegido da vista de quem passava na rua e urinou na pelota de jornal. Com o papel molhado limpou duas pequenas áreas do espelho e por elas deduziu que o aço devia estar bom de ponta a ponta.


Satisfeito com o achado, nosso homem tornou a fechar a porta do armário, esperando encontrá-lo intato quando voltasse com uma kombi de aluguel para levar o espelho; se ninguém o vira antes, certamente ninguém ia vê-lo naquele dia. Mas antes era preciso agradecer ao santo fumando um bom charuto ali mesmo, com calma; para que pressa, se o dia estava ganho? Depois de limpado e exposto no belchior, o espelho não demoraria a encontrar comprador.


Não errou na previsão. Logo no primeiro dia um decorador se interessou, indagou o preço. Achou caro, fez uma contraproposta. Experiente, o belchior não quis vender ao primeiro interessado, mas anotou nome e telefone. Horas depois entrou um casal jovem procurando uma mesa de jantar extensível. Não gostaram das únicas duas que havia, ambas precisando de conserto, o que encareceria o preço final. Quando saíam, viram o espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz baixa, compraram sem regatear.


Depois de muito debate e experimentação concluíram juntos que o espelho ficaria bem na sala de visitas, instalado horizontalmente atrás do sofá de três lugares. Oposto a ele, separando a sala de visitas da de jantar, ficava uma marquesa de jacarandá trabalhado, também comprada em belchior e restaurada por empalhador recomendado pelo próprio vendedor. De cada lado do sofá havia uma poltrona Luís XV estofada de veludo caramelo pelo artista Mário Cotas, mas para isso tiveram de esperar seis meses, a lista de encomendas das dele era enorme. Valeu a espera. A sala ficou coisa de revista, diziam os amigos.


E o casal ficou feliz com a sala. Quando saíam para algum compromisso social sentiam-se como exilados, e arranjavam pretextos para se retirarem mais cedo e voltarem depressa para a sala acolhedora. Logo perceberam que a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria uma sala plebéia, com móveis de sentar, tapetes, alguns quadros indiferentes, requififes vários — igual a um sem-número de outras.


Por causa do espelho, e parece que sem perceber, o casal ficou passando a maior parte do tempo na sala, e às vezes até dormiam nela, um no sofá, outro na marquesa. Por que faziam isso? Se perguntados, possivelmente não saberiam o que responder. Sentiam-se felizes na sala, seria a resposta singela. Mas não precisavam dar essa explicação a ninguém, primeiro porque eram sozinhos e a senhora que cuidava da casa e da cozinha dormia fora; segundo, porque achavam aquilo natural, e o que é natural carece de explicação. Quanto mais olhavam para o espelho e viam a sala e eles mesmos refletidos no vidro impecável mas quase etéreo, mais gostavam dele; e já estavam achando que o encontro deles com o espelho, ou o contrário — o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem — podia ser alguma arrumação do destino; e se consideravam escolhidos. Imagine se o espelho tivesse ido para um novo-rico qualquer, um capadócio, um bicheiro, um fala-gritado?


Mas, como disse um cantador, a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele deve estar prevenido porque se desmancha à-toa, basta um ventinho, uma palavra impensada.


Foi o que aconteceu, ao que parece, porque quando voltaram o filme e o repassaram para ver se entendiam, ficaram achando que a mudança começara numa tarde esplêndida de domingo, o sol iluminando a varanda da frente, crianças brincando, gritando e rindo embaixo na praça, o casal na sala gozando a companhia do espelho. De repente a mulher, serena, alegre, reflexiva, deitada na marquesa, olhando pela porta da varanda e torcendo um chumaço de cabelo com o polegar e o indicador da mão direita, disse em voz calma, mais como se fosse um pensamento que tivesse lhe escapado pela boca:


— Não acha que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho?


O homem, sempre atencioso, deitado no sofá, os pés descalços sobre uma almofada, os joelhos dobrados, lendo o segundo volume do Corpo de Baile de Guimarães Rosa, pousou-o aberto sobre o peito e olhou intrigado para a mulher.


— Como é mesmo, filha?


— Eu disse alguma coisa? — indagou a mulher, olhando-o intrigada.


— Disse que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho. Aliás, não disse; perguntou se eu não achava.


— Foi, é? Ora essa! — Voltou a torcer a mecha de cabelo por um instante, calada. — Bem, se eu disse, então é porque estava pensando.


Ele pegou novamente o livro, mudou de idéia antes de localizar o ponto onde havia parado. Pousou-o de novo no peito. A observação da mulher ficou interessando mais.


— Esse pensamento é novo ou já lhe ocorreu antes? — perguntou.


Como não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que dias antes no trabalho, ao ouvir uma colega falar do fim de semana altamente relaxante que passara com o marido e amigos em um hotel-fazenda no Vale do Paraíba, fizera uma comparação e ficara em dúvida se eles dois estariam certos fechando-se tanto em casa e em si mesmos por causa do espelho, como se o mundo lá fora não existisse; e se indagara se isso não acabaria prejudicando-os de alguma maneira.


— Bem, já que o assunto pulou a cerca, é porque chegou a hora. Então não vamos continuar fazendo de conta que ele não existe. Eu também tenho me preocupado com o espelho de uns dias para cá.


— É mesmo? Como assim? — disse ela, ao mesmo tempo em que passava da posição de semideitada para a de semi-sentada.


Um dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui conversando com Emer e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para eles para dizer qualquer coisa, tive uma sensação esquisita. Emer me perguntara sobre meninos de rua,sobre a matança. Quando dei minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram Emer e Zenaide. Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros. Esses aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles eram as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma vergonha, uma desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião verdadeira estava nas imagens refletidas. Fiquei horrorizado. Disfarcei, levantei, fui à varanda pretextando ter ouvido qualquer coisa lá fora. Felizmente você apareceu logo com o café.


— Me lembro que quando entrei com a bandeja você vinha da varanda. Só isso.


— Então eles também não devem ter notado. Ainda bem. Mas fiquei transtornado. Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles.


Ela olhou demoradamente para o espelho e disse: — Gostaria muito de pensar... pensar não, ter certeza ... que você tivesse imaginado isso.


— Eu também. Mas não dá para fraudar Foi real.


Não falaram mais no assunto, mas pensaram muito, cada um por si. De tardinha fizeram um lanche na sala de jantar, esforçando-se os dois para não falarem no espelho nem olharem para ele. Depois ligaram a televisão, nada de interessante. Que tal um cinema à noite? Consultaram o jornal, optaram por uma comédia inglesa, "O Garçom Venturoso", de Peter Ustinov. Os ingleses são bons em comédia, e Ustinov melhor ainda, lembra-se de "Vice-Versa"?


O filme é a história de um garçom de Charlotte Street que encontra a seu lado num banco do metrô uma bolsinha minúscula. Guarda-a no bolso para ver depois se contém algum valor. Quando a abre em casa, vê que tem um diamante do tamanho de ovo de codorna, com nota de venda de uma loja de Amsterdã. O preço, uma fortuna. O filme todo é o desespero do garçom para encontrar um lugar seguro onde esconder o diamante até poder dispor dele sem risco. Não tem experiência em atividades clandestinas e não pode consultar ninguém para não levantar suspeita. Não pode dividir o problema com a mulher porque ela tem coceira na língua. Todo esconderijo que imagina logo lhe parece escancarado. Levanta-se no meio da noite para mudar o diamante de lugar. Pensa engoli-lo para recuperá-lo no dia seguinte, e assim ir fazendo dia após dia, mas na primeira se tentativa quase morre engasgado, o raio do diamante bem podia ser um pouco menor.


O homem vive sonolento, cochila no trabalho, o chefe o adverte. Finalmente o pobre garçom conclui que não existe em toda Londres um lugar seguro para quem não tem diamantes esconder um diamante do tamaninho de um ovo de codorna. E resolve entregá-lo à polícia.


Em vez de distraí-los, o filme agravou as preocupações inconfessáveis do casal. Na mesma noite retiraram o espelho da parede, o que não foi difícil: bastou retirar com torques as três escápulas do alto, içar o espelho das três escápulas que o sustentavam embaixo, depois virá-lo de frente para a parede e pousá-lo no chão atrás do sofá.


No dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam negócio pela primeira proposta, como tinham feito quando da compra. Mas continuaram usando espelhos, ele para fazer a barba, ela para se pintar e pentear.

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