Quando Salviano começou a namorar Edila, o pai o chamou:
— Senta, meu filho, senta. Vamos bater um papo.
Ele obedeceu:
— Pronto, papai.
O velho levantou-se. Andou de um lado para outro e senta de novo:
— Quero saber, de ti, o seguinte: esse teu namoro é coisa séria? Pra casar?
Vermelho, respondeu:
— Minhas intenções são boas.
O outro esfrega as mãos.
— Ótimo! Edila é uma moça direita, moça de família. E o que eu não quero para minha filha, não desejo para a filha dos outros. Agora, meu filho, vou te dar um conselho.
Salviano espera. Apesar de adulto, de homem-feito, considerava o pai uma espécie de Bíblia. O velho, que estava sentado, ergue-se; põe a mão no ombro do filho:
— O grande golpe de um namorado, sabe qual é? No duro? — E baixa a voz: — É não tocar na pequena, não tomar certas liberdades, percebeu?
Assombro de Salviano: "Mas, como? Liberdades, como?".
E o pai:
— Por exemplo: o beijo! Se você beija sua namorada a torto e a direito, o que é que acontece? Você enjoa, meu filho. Batata: enjoa! E quando chega o casamento, nem a mulher oferece novidades para o homem, nem o homem para a mulher. A lua-de-mel vai-se por água abaixo. Compreende?
Abismado de tanta sabedoria, admitiu:
— Compreendi.
A SOMBRA PATERNA
Na tarde seguinte, quando se encontrou com a menina, tratou de resumir a conversa da véspera. Terminou, com um verdadeiro grito de alma:
— Muito bacana, o meu pai! Tu não achas?
Edila, também numa impressão profunda, conveio: "Acho”.
— Concordas?
Foi positiva:
— Concordo.
Pouco antes de se despedir, Salviano batia no peito:
— Dizem que ninguém é infalível. Pois eu vou te dizer negócio: meu pai é infalível, percebeu? Infalível, no duro
O BEIJO
Nesse dia, coincidiu que a mãe de Edila também a doutrinasse sobre as possibilidades ameaçadoras de qualquer namoro. E insistiu, com muito empenho, sobre um ponto que considerava importantíssimo:
— Cuidado com o beijo na boca! O perigo é o beijo na boca!
A garota, espantada,protestou
— Ora, mamãe!
E a velha:
— Ora o quê? É isso mesmo! Sem beijo não há nada, está ,.tudo muito bem. OK. E com beijo pode acontecer o diabo. Você é muito menina e talvez não perceba certas coisas. Mas pode ficar certa: tudo que acontece de ruim, entre um homem e uma mulher, começa num beijo!
O IDÍLIO
Foi um namoro tranqüilo, macio, sem impaciências, arrebatamentos. Sob a inspiração paterna, ele planificou o romance, de alto a baixo, sem descurar de nenhum detalhe. Antes de mais nada, houve o seguinte acordo:
— Eu não toco em ti até o dia do casamento.
Edila pergunta:
— E nem me beija?
Enfiou as duas mãos nos bolsos:
— Nem te beijo. OK?
Encarou-o, serena:
— OK.
Dir-se-ia que este assentimento o surpreendeu. Insinua:
— Ou será que você vai sentir falta?
— De quê?
E Salviano, lambendo os beiços:
— Digo falta de beijos e, enfim, de carinho.
Sorriu, segura de si:
— Não. Estou cem por cento com teu pai. Acho que teu pai está com a razão.
Salviano não sabe o que dizer. Edila continua, com o seu jeito tranqüilo:
— Sabe que essas coisas não me interessam muito? Eu acho que não sou como as outras. Sou diferente. Vejo minhas amigas dizerem que beijo é isso, aquilo e aquilo outro. Fico boba! E te digo mais: eu tenho, até, uma certa repugnância. Olha como eu estou arrepiada, olha, só de falar nesse assunto!
O VELHO
Desde menino, Salviano se habituara a prestar contas quase diárias ao pai, de suas idéias, sentimentos e atos. O velho, que se chamava Notário, ouvia e dava os conselhos que cada caso comportava. Durante todo o namoro com Edila, seu Notário esteve, sempre, a par das reações do filho e da futura nora. Salviano, ao terminar as confidências, queria saber: "Que tal, papai?". Seu Notário apanhava um cigarro, acendia-o e dava seu parecer, com uma clarividência que intimidava o rapaz:
— Já vi que essa menina tem o temperamento de uma esposa cem por cento. A esposa deve ser, mal comparando, e sob certos aspectos, um paralelepípedo. Essas mulheres que dão muita importância à matéria não devem casar. A esposa, quanto mais fria, mais acomodada, melhor!
Salviano retransmitia, tanto quanto possível, para a namorada, as reflexões paternas. Edila suspirava: "Teu pai é uma simpatia!". De vez em quando, o rapaz queria esquecer as lições que recebia em casa. Com uma salivação intensa, o olhar rutilante, tentava enlaçar a pequena. Edila, porém, era irredutível; imobilizava-o:
— Quieto!
Ele recuava:
— Tens razão!
CATÁSTROFE
Um dia, porém, o dr. Borborema, que era médico de Edila e família, vai procurar Salviano no emprego. Conversam no corredor. O velhinho foi sumário: "Sua noiva acaba de sair do meu consultório. Para encurtar conversa: ela vai ser mãe!". Salviano recua, sem entender:
— Mãe?!...
E o outro, balançando a cabeça: "Por que é que vocês não esperaram, carambolas? Custava esperar?". Salviano travou-lhe o braço, rilhava os dentes: "De quantos meses?". Resposta: "Três". Dr. Borborema já se despedia: "O negócio, agora, já sabe: é apressar o casamento. Casar antes que dê na vista". Petrificado, deixou o médico ir. No corredor do emprego, apertava a cabeça entre as mãos: "Não é possível! Não pode ser!". Meia hora depois, desembarcava e invadia, alucinado, a casa do pai. Arremessou-se nos braços de seu Notário, aos soluços.
— Edila está nessas e nessas condições, meu pai! — E, num soluço mais,fundo, completa: — E não fui eu! Juro que não fui eu!
MISERICÓRDIA
Foi uma conversa que se alongou por toda uma noite. No seu desespero inicial, ele berrava: "Cínica! Cínica!". E soluçava: "Nunca teve um beijo meu, que sou seu noivo, e vai ter o filho do outro!". O pai, porém, conseguiu, após poucos, aplacá-lo. Sustentou a tese de que todos nós, afinal de contas, somos falíveis e, particularmente, as mulheres: "Elas são de vidro", afirmava. Alta madrugada, o pobre-diabo pergunta: "E eu? Devo fazer o quê?". Justiça se lhe faça - o velho foi magnífico: "Perdoar. Perdoa, meu filho, perdoa!". Quis protestar: "Ela merece um tiro!". Mais que depressa, seu Notário atalha:
— Ela, não, nunca! Ele, sim! Ele merece!
— Quem?
Baixa a voz: "O pai da criança! Esse filho não caiu do céu, de pára-quedas! Há um culpado". Pausa. Os dois se entreolham. Seu Notário segura o filho pelos dois braços:
— Antes de ti, Edila teve um namorado. Deve ter sido ele. Se fosse comigo, eu matava o cara que...
Ergue-se, transfigurado, quase eufórico: "Tem razão, meu pai! O senhor sempre tem razão!".
O INOCENTE
Pôde, assim; desviar da noiva o seu ódio De manhã, passou pela casa de Edila. Com apavorante serenidade, em voz baixa, pediu o nome do culpado. Diante dele, a garota torcia e destorcia as mãos: "Não digo! Tudo, menos isso!". Ele sugeria, desesperado: "Foi o Pimenta?". O Pimenta era o antigo namorado de Edila. Ela dizia: "Não sei, não sei!". Salviano saiu dali certo. Procurou o outro, que conhecia de nome e de vista. Antes que o Pimenta pudesse esboçar um gesto, matou-o, com três tiros, à queima-roupa. E fez mais. Vendo um homem, um semelhante, agonizar aos seus pés, com um olhar de espanto intolerável, ele virou a arma contra si mesmo e estourou os miolos. Mais tarde, desembaraçado o corpo, foi instalada a câmara-ardente na casa paterna.
Alta madrugada, havia, na sala, três ou quatro pessoas, além da noiva e de seu Notário. Em dado momento, o velho bate no ombro de Edila e a chama para o corredor. E, lá, ele, sem uma palavra, aperta entre as mãos os seios da pequena e a beija na boca, com loucura, gana. Quando se desprendem, seu Notário, respirando forte, baixa a voz:
— Foi melhor assim. Ninguém desconfia. Ótimo.
Voltaram para a sala e continuaram o velório.
— Foi melhor assim. Ninguém desconfia. Ótimo.
Voltaram para a sala e continuaram o velório.
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