quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

CRÔNICA:"HERÓI. MORTO. NÓS"

                                                                                  Autor:Loureço Diaféria
Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra. Que nome devo dar a esse homem? Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor. Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói - como o santo - é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.
O herói redime a humanidade à deriva. Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel - onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer - oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos. No instante em que o sargento - apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher - salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho. Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que - como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem - não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa. O povo prefere esses heróis: de carne e sangue. Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos. Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar. Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis - tarde demais".
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A VERDADE DOS FATOS( OU A VERDADE POR TRÁS DA CRÔNICA)


Em agosto de 1977, o sargento do exército Sílvio Delmar Holenbach, 33 anos, passeava com a mulher e os filhos no Zoológico de Brasília. Estava de saída quando ouviu pedidos de socorro de um garoto que acabara de cair num viveiro de ariranhas. Correu para o local, mesmo com os gritos de “Não vai! Não vai!” da mulher. Pulou no poço, salvou o menino, mas morreu três dias depois em decorrência de uma infecção generalizada causada pelas mordidas dos animais.
O ato heroico ganhou visibilidade na imprensa e uma antológica crônica do jornalista Lourenço Diaféria. Sob o título Herói. Morto. Nós., publicada na Folha de S.Paulo, o texto exaltava a coragem do militar. “Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio.”
Ao mesmo tempo, em pleno regime militar, fazia sarcásticas críticas a seus companheiros de farda. O alvo declarado era Duque de Caxias, patrono do Exército brasileiro. “Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal.”
O texto irritou o governo militar. Diaféria foi preso duas semanas depois, enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Em 14 de setembro de 1977, seu espaço diário no jornal saiu em branco, somente com uma nota da redação: A crônica diária de Lourenço Diaféria deixa de ser publicada em virtude de o cronista ter sido detido às 17h de ontem pela Polícia Federal conforme noticiamos na Primeira Página.
O episódio desencadeou o momento mais tenso nas relações do jornal com os militares. O ministro-chefe da Casa Civil, general Hugo Abreu, ligou de uma forma pouco amistosa para o publisher da Folha, Octávio Frias de Oliveira, com quem mantinha uma relação cortês. “Quem está falando aqui não é o seu amigo, mas o chefe da Casa Militar da Presidência da República”, disse. “Se continuar publicando a coluna em branco e fazendo críticas, nós vamos fechar o seu jornal.” Frias cedeu, as críticas cessaram e o jornalista foi demitido.
O processo contra Diaféria durou três anos, até ser absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Desde 2000, entre outras atividades, ele assinava a saborosa seção Almacrônica do Almanaque. Morreu em agosto de 2008, aos 75 anos.
                                                                              

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