sábado, 3 de dezembro de 2011

Crônica:"BURBURINHO NA CALADA DA NOITE"

                                                         Crônica do Livro: "CAUSOS CLÍNICOS"                                          




                                                                                                   

                                                                                                                                 Autor:Fernando Ortiz
                                                                  
 
O Plantão mal começara e muitos já eram os pacientes que se aglomeravam esperando atendimento médico.Eu, naturalmente ainda residente de neurologia,aflito comentava com os outros colegas que aquela seria mais uma noite tumultuada!!
Na Enfermaria de clínica Médica,o número era ainda maior,sem contar a Pediatria e as demais Enfermarias.Misturavam-se pacientes que realmente precisavam de Pronto-Atendimento com outros típicamente ambulatorias.
Porém,naquela fatídica noite,após uma maratona de atendimentos,exausto e esperando contar com a cumplicidade complacente do corpo de enfermagem fui tentar repousar no dormitório dos plantonistas,mas não demorou muito,uma implacável enfermeira chamou-me para mais um atendimento,tratava-se segundo ela de uma senhora de avançada idade que inflexível insistia em ser atendida.Ponderava a enfermeira que esta senhora seria a última paciente daquela inesquecível noite.Ciente que não era um caso de urgência fui ao encontro da tal senhora entre um bocejo e outro,isso já era altas horas de uma madrugada fria.Abrí a porta da sala de espera e automaticamente perguntei:
-Quem é o próximo?Levantou-se da cadeira uma senhora um tanto irritada pela minha demora e de imediato crispou-me com um olhar fulminante.Sem titubear arrisquei:
-Vamos entrar,eu disse.
E iniciei as perguntas de praxe da Anamnese,ela olhava-me com desconfiança e mal respondia minhas perguntas.Terminado o exame físico,disse à ela:
-A senhora tem isso,mais isso e mais isso.Vou receitar alguns medicamentos,mas se a senhora não melhorar terá que retornar para uma nova consulta!!
Ela balançou a cabeça negativamente.
-Não,por quê? Indaguei.
-Eu não vim até aqui por causa destas baboseiras!Retrucou a senhora.
Apoio a cabeça com uma das mãos,franzo a testa e após um longo bocejo,insisto na pergunta:
-Então o quê a trouxe a esta hora da madrugada ao PS,minha senhora?!?
Ao que ela retrucou de imediato:
-O doutor ainda não percebeu todo o falatório...Pois eles não me deixam dormir!!
Intrigado resolvo inquirir a paciente:
-Mas, do quê a senhora esta se referindo?
Ela do alto dos seus setenta anos,com altivez arrematou:
-São eles,doutor...Insistiu.São eles!!Ficam conversando a noite inteira e não me deixam dormir!!!
-Ufa!!Respirei aliviado,finalmente tinha compreendido o drama que afligia aquela senhora,e arrisquei meu palpite:
-São seus vizinhos,não são?São eles a causa da sua insônia?...É simples, basta um telefonema para uma Delegacia de Polícia próxima e pronto,estara resolvido o seu problema!!
A doce senhora arrebatadora,pôs-se em pé e com dedo em riste,fulminou:
-Bem se vê que o senhor ainda é um estudante de medicina,pois se de fato fosse um médico já teria entendido a extensão do meu sofrimento!!
Meio sem jeito, tentei contornar a situação e expliquei que eu era médico-residente daquele Hospital e que naquela noite estava de plantão no PS,expliquei que minhas intenções eram as melhores possíveis e para arrematar tentando minorar seu sofrimento,disse:
-Minha senhora,trata-se de um caso clínico simples.Isso tem cura fácil...Logo que a senhora chegar em sua casa ficara boa!!Arrisquei-me,mas o argumento foi em vão e de pronto retrucou a já indócil senhora:
-Boa uma ova!! Isso porque não esta acontecendo com o senhor!!...Eu já lhe disse e repito:Eles ficam conversando à noite inteira e não me deixam dormir!!
Resolvi naquele momento e quase vencido pelo sono,dar um basta naquela situação e questionei:
-ELES QUEM??
Ela fitou-me demoradamente e balançando a cabeça levemente com ar de desdém,sem hesitar respondeu-me com naturalidade:
-Oras...Meus joelhos,moço!!!Quem mais poderiam ser...A não ser estes dois...,eles resolvem tagarelar entre si à noite inteira e não me deixam dormir!!Contam um para o outro cada causo cabeludo,que fico até ruborizada com tanta sem-vergonhice!!
Enfim,sorri amarelo e outra vez bocejei,desta vez aliviado.Estava quase amanhecendo,era o fim de mais um Plantão!!
Neste caso lembrei-me de Alois Alzheimer,que descreveu em 1907,em uma mulher na terceira idade uma forma de demência senil de evolução lentamente progressiva,mas isso é outra História!!
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ADENDO:O fato ocorreu num Plantão de um Hospital de Ribeirão Preto(SP),quando na ocasião eu era médico residente em Neurologia, nos idos de 1984.

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